Segurança Jurídica e as Decisões em Matéria Fiscal

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas177-189

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O caso COFINS, sopesado no capítulo pretérito, ensejou grande repercussão e serve de exemplo límpido de alteração jurisprudencial em matéria tributária, motivo pelo qual este capítulo trará algumas reflexões e sugestões sobre a aplicabilidade da segurança jurídica e as modificações nas decisões sedimentadas dos tribunais.

O Direito Tributário deveria agir em conformidade à segurança econômica e social, porquanto a cobrança de tributos deve estar ligada à situação financeira do contribuinte e à sua capacidade contributiva. Nesse sentido: "A capacidade contributiva do sujeito passivo sempre foi padrão de referência básico para aferir-se o impacto da carga tributária e o critério comum dos juízos de valor sobre o cabimento e a proporção do expediente impositivo"1.

Ao mesmo tempo, o Direito Tributário tem como um de seus pilares o princípio da segurança jurídica, o qual, na concepção de Heleno Taveira2, sempre foi considerado um princípio implícito do estado democrático de direito, por expressar a certeza jurídica.

A segurança jurídica é, indubitavelmente, o princípio garantidor da higidez das relações sob a égide estatal, com aplicação nas relações particulares, tornandose, nesse caso, conjunto rígido de regras assecurató

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rias da efetividade contratual, ou seja, "[...] há segurança jurídica quando o cidadão tem a capacidade de conhecer e de calcular os resultados que serão atribuídos pelo Direito aos seus atos"3.

Por consequência, a segurança jurídica garante a observação precípua da lei nas relações interpessoais, estabiliza a aplicabilidade das normas e unifica o ordenamento jurídico.

No sistema jurídico alemão, por exemplo, ante a falta de um sistema constitucional tributário, com princípios específicos, temse o dogma de que o princípio da segurança jurídica advém do Estado de Direito.4Todavia, assim não ocorre no sistema jurídico brasileiro, em razão de as garantias de uma isonomia jurídica na interpretação tributária terem como base o enquadramento constitucional nos princípios e garantias previstos na Constituição, muitos específicos desse subsistema.

Ainda com enfoque no Direito Tributário, cabe clarear que o princípio da segurança jurídica encontrase inserido também no subsistema

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constitucional tributário brasileiro5, por força do que determinam o art. 5º, § 2º, e art. 150, caput, também da Constituição de 1988: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"6. Assim sendo, a Constituição autoriza a recepção de outros direitos e garantias, incluindo o da segurança jurídica.

O artigo 150 da Constituição brasileira, por sua vez, estabelece algumas vedações aos entes federativos em benefício do contribuinte, sem prejuízo de outras garantias, razão pela qual também recepciona a segurança jurídica como garantia.

Desse modo, temos que a Constituição Federal de 1988 recepcionou o valor, o direito e a garantia do princípio da segurança jurídica tributária, uma vez que este consiste em um princípio implícito do sistema tributário nacional que decorre do próprio estado democrático de direito.

Não bastasse isso, há outra forma por meio da qual pode ser extraído da Constituição Federal o princípio implícito da segurança jurídica.7

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O art. 5º, XXXVI da CF/88 estabelece que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"8, e pela aludida disposição constitucional, as leis não incidirão nem produzirão efeitos nas situações já consolidadas antes de sua edição e entrada em vigor. O citado dispositivo também resguarda a segurança jurídica das relações sociais e deve ser aplicado também no âmbito tributário9.

Em virtude disso, compreendemos como cristalina a assertiva de que o princípio da segurança jurídica ascendeu na doutrina e na jurisprudência, e tem como aspecto objetivo a aplicação das normas, de acordo com sua ordem e coerência, e como aspecto subjetivo a expectativa dos indivíduos tutelados pelas normas10.

O princípio da segurança jurídica tem como ofício o rompimento da ideia medieval de que os tributos eram atos compulsórios do rei, portanto incontestáveis. Na fase constitucional do dispositivo tributário, este,

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como todos os outros atos estatais, deve estar estritamente ligado ao que a lei determina, e esta, por sua vez, deve observar os princípios e garantia constitucionais da pessoa, no caso do contribuinte.

Ademais, conforme lição de Andrei Pitten Velloso, o princípio em estudo ainda constitui, na seara do Direito Tributário, uma limitação ao poder estatal de tributar, e possui, portanto, caráter fundamental no Estado de Direito, por trazer garantia aos administrados11.

Como vemos, tratase de um princípio fundamental para a estabilidade e harmonia nas relações sociais e imperativo sua aplicação para a elaboração e interpretação das normas tributárias.

Evidenciada a necessidade da observância do princípio da segurança jurídica pelos órgãos do Poder Judiciário, devem ser levantadas as situações que ensejam o poderdever de o julgador aplicar a modulação dos efeitos de uma decisão.12

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Se a própria lei em sentido formal não tem o condão de alterar situações jurídicas já consolidadas, "como o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"13- art. 5º, XXXVI c.c arts. 59 e 61, todos da Constituição Federal do Brasil14-, em razão da necessidade de se resguardar a segurança nas relações jurídicas, não é possível que seja concedida liberdade irrestrita aos órgãos do Poder Judiciário para promover a alteração de entendimento jurisprudencial consolidado, pois tal medida ocasionaria violação ao princípio da segurança jurídica.

Isso porque a alteração do entendimento jurisprudencial corresponde a uma nova norma jurídica, por trazer consigo uma nova regra de conduta a ser observada pela sociedade, que terá de se adaptar ao novo posicionamento.

Destarte, resta latente a necessidade de se aplicarem a tal alteração jurisprudencial os mesmos princípios e garantias conferidos a uma nova norma, como a irretroatividade, a fim de se preservar a segurança jurídica constitucionalmente prevista.15

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Hodiernamente, como preteritamente analisado, foi conferido à jurisprudência a mesma força vinculante das leis sem sentido formal, porquanto serve de norte interpretativo para os demais órgãos do Poder Judiciário, mormente as súmulas - vinculantes ou não.

Por essa razão, o entendimento jurisprudencial consolidado por um lapso temporal significativo, capaz de padronizar o comportamento social, não pode ser modificado sem a pertinente modulação dos efeitos do novo posicionamento, sob pena de infringência ao princípio da segurança jurídica.

No caso da COFINS, explicitado no capítulo anterior, é um exemplo de mudança jurisprudencial que gerou grande polêmica, por carrear uma mudança abrupta de comportamento social, já que quem há tempos tinha a certeza de não ser contribuinte passou a ter a certeza de o ser, o que alterou, direta ou indiretamente, "o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".16A mudança de orientação jurisprudencial sem limites ou critérios implica violação patente da garantia da segurança jurídica das relações.

Ademais, como é cediço, vivemos sob o império de um Estado de Direito em que vigora, de modo intenso, o princípio da legalidade e ao qual estamos jungidos, o que não tem o condão de prejudicar "o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".17Assim, não pode o Poder Judiciário, por seus órgãos - e mediante alteração de orientação jurisprudencial firme e consolidada -, ser considerado apto a alterar a certeza jurídica sobre a qual, durante um significativo lapso temporal, pautaramse os operadores do direito e a sociedade.

Do contrário corremos o risco de violação do princípio da segurança jurídica e, consequentemente, de direitos fundamentais individuais,

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sociais e coletivos em razão dos prejuízos aos já mencionados direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.

Se de um lado a liberdade de decidir e de interpretar os institutos jurídicos consiste em corolário do princípio do livre convencimento motivado18, de outro poderá estar admitindo a negativa de vigência ao princípio da segurança jurídica, valor supremo do ordenamento jurídico.

A situação em espeque ainda traz consigo, indiretamente, um confronto entre os princípios do livre convencimento motivado e da segurança jurídica das relações, impasse que pode ser solucionado pela relativização da produção dos efeitos das decisões modificativas de orientação jurisprudencial, consolidada por sua modulação, que estaria apta até mesmo a viabilizar, com segurança jurídica, a evolução jurisprudencial.

Dessa forma, conforme já arrazoado no presente estudo, as hipóteses de cabimento da modulação dos efeitos das decisões ultrapassam aquelas previstas em lei, tendo em vista que sua utilização fundamentase, primordialmente, no princípio da segurança jurídica, visando conferir proteção à confiança dos jurisdicionados, devendo...

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