Liberdade para a Prática Religiosa e “Secularismo Positivado” em Alguns Sistemas Legais Europeus: O Caso Italiano

AutorVincenzo Pacillo
CargoProfessor Associado da University of Modena e Reggio Emillia – Faculdade de Direito (Churches – State Realtionships).
Páginas54-78

Traduzido por: Bruno Costa Teixeira1 e Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira2

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1 Liberdade para a prática religiosa e o artigo 9 da Convenção Européia de Direitos Humanos

O Artigo 9 da Convenção Européia de Direitos Humanos – ratificada por todos os membros do Conselho Europeu – é inspirado no texto original do Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual garante de forma expressa a liberdade de pensamento, consciência e religião.

O Artigo 9 prescreve que:

  1. Todos têm liberdade de pensamento, consciência e religião; é inerente a estes direitos a liberdade para mudar de religião ou crença, esteja o individuo só ou em comunidade, seja local público ou privado, poderá manifestar sua religiosidade por adoração, ensinamento, prática ou observância.

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  2. A Liberdade para a manifestação religiosa ou de convicções pessoais só está sujeita a limitação quando previstas em Lei ou ainda quando houver ameaça à Sociedade Democrática, isto é, quando os interesses relativos à segurança pública, manutenção da ordem pública, saúde ou moralidades, bem como para a proteção dos direitos fundamentais e liberdades garantidas, estiverem ameaçados.

    Primeiramente, deve-se pontuar que o Artigo 9 protege, sobretudo, o “pensamento”, a “consciência” e a “crença religiosa”: desta forma, o ateísmo, assim como o agnosticismo possuem a mesma proteção por parte da Convenção. No caso Kokkinakis contra Greece, a CEDH – Corte Européia de Direitos Humanos interpretou o Artigo 9 como um direito geral e abrangente, de modo a reconhecer a crença religiosa e a liberdade de consciência enquanto partes vitais da identidade do indivíduo:3

    “Isto é, além de, na dimensão religiosa, compor um dos elementos fundamentais para a formação do indivíduo que segue uma religião e para estruturar sua concepção acerca da vida, o mesmo direito ou garantia, também é recurso precisoso para legitimar a liberdade de pensamento dos ateus, agnósticos e mesmo dos desinteressados”.4

    Conforme o Artigo 9, a Corte Européia de Direitos Humanos já havia determinado que “crença”, nos propósitos dete dispositivo, inclui posicionamentos acerca do abortamento5, do pacifismo6 ou do veganismo7. Ademais, dois grupos sociais minoritários – cientologistas e testemunhos de Jeovah – os quais são alvo de constante preconceito por parte dos membros das demais doutrinas religiosas, também foram aceitos como religião.8

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    Desde logo, deve-se ressaltar que a manifestação religiosa tutelada pelo Artigo 9 condiz apenas com atos de culto, ensinamentos, prática e participação.

    A CEDH estabeleceu que o artigo em questão tutela somente aqueles atos intimamente ligados à crença, ao pensamento ou à devoção, aspectos gerais inerentes às formas religiosas conhecidas. Por outro lado, o mesmo dispositivo legal não tutela aqueles atos individuais influenciados pelo sentimento religioso9. No caso Arrowsmith contra UK, ao requerentethe ficou proibida a distriuição de panfletos que defendem a saída de tropas militares da Irlanda do Norte. A Comissão frizou que deve-se considerar o caso concreto, no sentido de entender se o requerente age simplesmente pelo pacifismo ou por considerações pessoais10.

    Deve-se também, enfatizar os quarto princípios gerais relacionados, pela Corte Européia de Direitos Humanos, à liberdade religiosa garantida pelo Artigo 9.

    O primeiro é de grande importância no que diz respeito à liberdade para a prática religiosa em uma Sociedade Democrática. A Corte assinalou que “as liberdades de pensamento, de consciência e para a prática religiosa consistem em fundamentos de uma ‘Sociedade Democrática’, conforme disposto na Convenção. O pluralismo, peculiar à Sociedade Democrática, e construído ao longo dos séculos, depende deste sentimento de liberdade.”11

    O segundo princípio transmite a idéia de que é inerente à liberdade religiosa, o direito de converter, por meio de ensinamentos, failing which, moreover, freedom to change one’s religion or belief, enshrined in Article 9, would be likely to remain a dead letter.12

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    O terceiro princípio condiz com a idéia de que liberdade religiosa is that religious freedom means non-discrimination between various religious groups. A Corte, frequentemente, enfatiza a igura do Estado enquanto “imparcial organizador do exercício das várias formas de religião, fé e crença”13. Por derradeiro, qualquer forma de discriminação entre grupos religiosos será contrária ao ECHR. Ademais, não cabe ao podere estatal estabelecer juizo de valor acerca de crença ou doutrina religiosa.14

    Finalmente, o quarto princípio determina que liberdade para a prática religiosa também está associada à proteção contra intervenção arbitrária do Estado, bem como à livre escolha para as lideranças sociais e respeito ao pluralismo. A Corte determinou que “o direito de liberdade religiosa do crente abarca a expectativa deste último em relação ao funcionamento pacífico de sua comunidade, livre de qualquer intervenção estatal arbitrária. De fato, a existência autônoma das comunidades religiosas é indispensável para a efetivação do pluralismo em uma Sociedade Democrática e, desta forma, efetivar as diretrizes previstas no Artigo 9.”15

    No caso Metropolitan Church of Bessarabia e outros contra Moldova, a Corte reafirmou os princípios aqui tratados, visto que enfatizou a relevância da nãointerferência estatal e da proteção legal à autonomia das comunidades religiosas, nos seguintes termos: “a partir do momento em que as comunidades religiosas tradicionais passaram a existir de forma legalmente organizada, qualquer leitura do Artigo 9 deve ser levada à luz do Artigo 11 da mesma Convenção, de a a resguardar a vida social em face de eventuais intervenções estatais arbitrárias. Neste contexto, […] o direito de liberdade de crença, bem como o direito de liberdade para crença religiosa, os quais trazem em seu rol e garantias, o direito de livre manifestaçãoPage 58 religiosa em ambiente comunitário, o qual, reflete, por sua vez, o direito de livre associação estatal arbitrária.”16

2 Secularismo como limite legal para a liberdade religiosa em face da jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos

Conforme todo direito resguardado pela Convenção, a liberdade para a prática religiosa também está sujeita a restrições.

Todo Estado-membro pode limitar a liberdade religiosa, contudo, para estar de acordo com o Artigo 9, as limitações devem ser:

a) estabelecidas por lei,

b) necessárias e condizentes com os interesses da Sociedade Democrática: "aos interesses relacionados à segurança pública, bem como para a proteção da ordem pública, da saúde ou moral, ou ainda, para proteger os direitos e liberdades garantidos aos cidadãos"17,

c) proporcionais às circunstâncias do caso concreto.

De início, a limitação deve estar prescrita em Lei. A Corte Européia de Direitos Humanos assim assevera: "não busque fundamentos apenas na Lei doméstica, mas também verifique, na verdade, se os dizeres da Lei estão de acordo com aquilo que está expressamente previsto no preâmbulo da Constituição."18.

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Por outro lado, Cole Durham enfatizou que a lei meramente formal e burocrática não é suficiente para fazer valer o princípio do secularismo. De maneira semelhante, normas vagas e imprecisas também não contribuem para a eficácia da Convenção e de seus princípios, mas, na verdade, fornecem espaços para decisões arbitrárias.19

As segunda e terceira limitações podem ser lidas de uma só vez. A Corte determinou que toda limitação deve ser justificada em relação às circunstâncias empíricas de cada caso, bem como deve buscar fundamento no princípio da proporcionalidade20.

Resta-nos, neste ponto, esclarecer de que forma o princípio do secularismo adquire papel de limitador da liberdade de expressão religiosa.

Como é sabido, a Corte de Strasbourg transferiu o julgamento para a Corte Constitucional da Turquia (1998), que, a seu turno, ordenou a dissolução do Refah Party, uma vez que este foi coniderado um “centro de atividades contrárias ao princípio do secularismo” e extinguiu os direitos políticos de seis líderes por cinco anos21. Por sua vez, a Corte Européia não considerou qualquer violação à liberdade de associação, tutelada pelo Artigo 11 da CEDH. Na verdade, os motivos encontrados guardavam relação com a prescrição legal e com a necessidade de manutenção da Sociedade Democrática22. Três dos setes jurados discordaram do veredicto, de modo a alegar que as medidas foram desproporcionais, contudo, no cerne da decisão ficou concluído que o secularismo pode ser interpretado enquanto princípio orientador adequado – desde que previamente estabelecido por lei – para limitar a liberdade religiosa.

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A Corte confirmou esta tendência no caso Leyla Hahin contra Turquia. Em rigor, nesta decisão ficou decidido que o secularismo – conforme posicionamento da Corte – deve ser aplicado em consonância com os valores sustentados pela Convenção Européia, assim como ficou destacado que o mesmo princípio pode ser fundamental para resguardar os interesses políticos e sociais do sistema democrático na Turquia.23.

Entretanto, é preciso destacar que o secularismo pode ser limite legal para a liberdade de prática religiosa apenas se este princípio estiver claramente justificado em face do caso concreto e das emergências sociais.

Ademais, – à luz da importância da liberdade religiosa no sistema normativo da Convenção Européia de Direitos...

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