Proteção social e a saúde do trabalhador: contingências do sistema de mediações sociais e históricas

AutorJussara Maria Rosa Mendes; Dolores Sanches Wünsch; Maria Juliana Moura Corrêa
CargoPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)/Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul
Páginas55-63

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1 Introdução

O presente artigo tem como propósito resgatar a complexa estrutura do sistema de proteção social na perspectiva da Saúde do Trabalhador, à luz da mediação, categoria analítica, tomada da dialética, como um processo construído entre a natureza humana e sua historicidade - as realidades sociais que permeiam o contrato social. Expressa as mediações que ocorreram desde o projeto original nos conceitos e práticas das políticas sociais, ao longo dos períodos históricos e nos desafios atuais da luta por direitos humanos, bem como sua afirmação, cujo desenvolvimento sempre foi marcado por avanços e retrocessos, conforme o estágio de desenvolvimento da cidadania em cada momento.

A emergência do debate sobre a proteção social no cenário atual se justifica pela constante ameaça de perda de direitos, decorrente das proposições de reformas do sistema de seguridade social. O debate se situa nas particularidades concernentes ao sistema de proteção social, articuladas com as mudanças nas relações entre o capital e o trabalho e os consequentes impactos sobre a saúde do trabalhador. A partir destes eixos, apresentam-se, inicialmente, as concepções em que se inscreve o modelo institucionalizado dos sistemas de Proteção Social, revisitando à luz delas os patamares da cidadania a eles associados. Busca-se desenvolver reflexões que contribuam para a construção de uma agenda social tecida por políticas centradas nos marcos de um projeto societário que instaure novas formas de sociabilidade humana.

2 Configuração sócio-histórica da proteção social

Refletir sobre o paradigma da proteção social, suas peculiaridades e desafios na sociedade contemporânea, em uma rápida incursão nas questões teórico-conceituais que conformaram a dimensão social, significa evidenciar como estas políticas foram conquistadas nos diferentes períodos históricos. Sem dúvida, esta constitui uma proposta pertinente à inclusão desse debate, visando à construção de uma agenda política no âmbito dos direitos sociais e da Saúde do Trabalhador.

Com este propósito, apresenta-se a categoria da mediação1, presente nas relações sociais, para contribuir com a compreensão da instituição do sistema de proteção social. Este sistema é a principal estratégia de coesão social, estruturando-se a partir de um conjunto de políticas sociais que se efetivam pela intervenção do Estado, visando à satisfação das necessidades sociais decorrentes dos padrões de sociabilidade humana.

Para Mészáros (2002), essa realidade social é resultante da experiência humana constituída por meio de práticas, o lócus da mediação. A mediação intersubjetiva tem como problema central de análise as desigualdades oriundas das relações de trabalho e suas mediações de segunda ordem ou negativas, que incluem a precarização, exclusão social, subordinação, coerção e consentimento. As mediações de primeira ordem ou positivas - na regulação do processo de trabalho pelo intercâmbio da natureza e dos bens, na resistência e organização sindical - dão-se pela complexa relação entre a mediação natural e as mediações históricas.

As mediações de segunda ordem do capital constituem um círculo vicioso do qual aparentemente não há fuga. Pois elas se interpõem, como "mediações", em última análise destrutivas da "mediação primária", entre os seres humanos e as condições vitais para a sua reprodução, a natureza (MÉSZÁROS, 2002, p. 179).

A partir desta tipificação de mediação, Mészáros (2002) aponta que o sistema de mediação de segunda ordem tem um núcleo constitutivo formado pelo tripé capital, trabalho e Estado.

A proteção social, portanto, consolidada pelo movimento contraditório entre mediações de primeira e segunda ordem, vai, de forma sucessiva, nos diferentes momentos históricos, instituir direitos sociais que se viabilizam mediante as políticas públicas que visam atender as mais diferentes situações de vulnerabilidade e necessidades sociais que atingem os cidadãos, sejam elas decorrentes das relações sociais de produção, sejam das contingências naturais dos ciclos vitais. Portanto, as políticas sociais se afirmam como mediações que concretizam direitos sociais, com vistas a uma melhor garantia das condições de vida da classe trabalhadora.

O conceito de proteção social é um conceito amplo que, desde os meados do século XX, engloba a noção de seguridade social, constituindo-se num campo jurídico formal, assegurando os diretos a ela relacionados (PEREIRA, 2002). Historicamente, a proteção social representa um dos principais sistemas que articulam patamares de cidadania, concebido enquanto um conjunto de direitos que foram conquistados pelo movimento dos trabalhadores, a partir das relações de conflito das classes na luta por igualdades e das desigualdades que são estabelecidas no processo de mediação de reprodução e mediação de representação entre Estado e sociedade. Esse processo dialético é resultante da dinâmica contraditória do movimento hegemônico e contra-hegemônico, que se organiza em torno da luta por proteção social, enquanto parte da construção coletiva da cidadania e da institucionalidade estatal. Pressupõe, consequentemente, o reconhecimento das condições de desigualdades originárias na sociedade capitalista e o tensionamento presentePage 57 na efetivação das políticas de caráter distributivo. Entende-se, portanto, a proteção social como resultante de um sistema mediado por um conjunto de relações entre o Estado e a sociedade, que asseguram direitos sociais e o reconhecimento das desigualdades.

A proteção social surge mundialmente com a agudização da questão social, que se explicita no processo de industrialização e no movimento da classe operária, que, ao produzir socialmente a riqueza, não tem garantida a melhoria das condições de vida para si e para os trabalhadores e, tampouco, acesso a bens e serviços. Ocorre, assim, o fortalecimento da apropriação privada do capital. Desta forma, a organização social dos trabalhadores se origina do movimento de identificação e enfrentamento das desigualdades sociais, que desencadeia um processo contínuo em busca de mecanismos de proteção contra as adversidades. Neste contexto, a defesa da vida e da saúde no ambiente de trabalho dá início a um longo período de lutas por direito e liberdade.

Neste sentido, a proteção social surge, também, com a finalidade de "neutralizar ou reduzir o impacto de determinados riscos sobre o indivíduo e a sociedade" (VIANA; LEVCOVITZ, 2005, p. 17). Assim, os primeiros modelos de proteção social, estruturados a partir do trabalho assalariado e voltados para o controle das "situações de riscos" decorrentes da inserção produtiva, resultam do movimento contraditório que se instala pela pressão dos movimentos sociais e pela mediação do Estado, exacerbadas neste período da primeira revolução industrial.

A revolução industrial é um dos principais períodos históricos para compreender os princípios que nortearam as conquistas sociais e o direito à saúde na história de luta do movimento operário, período em que as exigências de trabalho e de vida ameaçam a própria mão de obra e acarretam a pauperização, sinônimo da miséria operária. O adoecimento dos trabalhadores é concebido como um flagelo, como doença contagiosa, desenhando-se, portanto, uma concepção de saúde centrada na higienização dos pobres e não resultante da percepção de suas condições de trabalho e de vida precarizadas. O reconhecimento da necessidade de adotar medidas de proteção social decorre, por um lado, da emergência de preservar a mão de obra operária, por outro, do movimento dos trabalhadores na luta da frente pela saúde, que tinha como reivindicação primordial o direito de viver, centrado na preocupação da proteção do corpo. A classe operária, portanto, nesta época, lutava por assegurar a subsistência. Saúde, neste período, representava defendera sobrevivência: "viver, para o operário, é não morrer" (DOLLÉANS, 1948, p. 14).

A proteção social, nos seus primórdios, configura-se como um sistema contributivo. O modelo bismarckiano é reconhecidamente a primeira modalidade de seguro social de que se tem conhecimento na história, ligando a proteção social ao Estado. Surgiu em 1862, na Alemanha, no governo de Otto von Bismarck, que teve, como resultado da forte pressão do movimento operário alemão, a concessão de seguros para as situações de acidentes de trabalho e aposentadoria. Já...

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