Saúde, higiene e segurança no trabalho no contexto do trabalho digno. A fragmentação do meio ambiente de trabalho operada pela reforma trabalhista

AutorRicardo José Macêdo de Britto Pereira
Páginas259-268

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Ricardo José Macêdo de Britto Pereira1

Considerações iniciais

O presente artigo examina o conceito de saúde e segurança no trabalho como elemento essencial do modelo de trabalho digno.

O trabalho digno é baseado no ideal de que todo trabalho humano seja prestado de acordo com os pata-mares estabelecidos normativamente, pelo que devem ser reprimidas práticas de exploração ou exclusão de pessoas em razão do trabalho. Um meio ambiente de trabalho em desacordo com as normas de saúde, higiene e segurança no trabalho constitui um dos fatores de maior agressão aos trabalhadores e consequentemente de distanciamento do referencial do trabalho digno.

A previsão de padrões mínimos de condições de trabalho impulsionou consideráveis avanços para a consolidação de um modelo protetivo de relações de trabalho. Na atualidade, contudo, esse modelo sofre resistências para o seu desenvolvimento, com tendências de reversão do que foi construído ao longo do tempo. Condições degradantes e precárias de trabalho são recriadas a todo momento desafiando e desconstruindo o modelo protetivo. A ausência de inovação ou a reversão normativas podem provocar sérios danos não apenas às vítimas diretas, mas aos trabalhadores em geral e a sociedade como um todo.

O trabalho digno como parâmetro geral de conduta que vincula diversos atores consiste na permanente busca para abolir toda prática ou ameaça de menosprezo e desconsideração pelos seres humanos que realizam trabalhos na sociedade em troca da remuneração para a subsistência própria e da família.

O Direito do Trabalho tradicional estendeu seu leque de proteção para incorporar novas áreas de atuação, no intuito de conferir proteção integral à pessoa do trabalhador. A tradicional proteção ao salário e à limitação da duração do trabalho foi associada ao meio ambiente de trabalho hígido. As proteções específicas, como a dispensada ao trabalho da mulher e dos jovens, ampliaram-se para conferir atenção especial às pessoas com deficiência, à agregação familiar e várias outras situações especiais que emergem no dia a dia das relações de trabalho.

A dinamicidade própria da referência do trabalho digno faz com que sua realização seja sempre parcial. Em matéria de saúde, higiene e segurança no trabalho, por mais que se tenha evoluído no campo normativo,

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são ainda constatados elevados índices de acidentes e adoecimentos em razão do trabalho2.

O sistema protetivo impõe pronta reação a condições inadequadas e degradantes de trabalho, o que pressupõe o caráter indisponível das disposições sobre saúde, higiene e segurança no trabalho. Em contexto de elevados índices de acidentes e adoecimentos no trabalho, mais se justifica o fortalecimento da natureza cogente das previsões relacionadas à matéria e não a sua flexibilização.

A avaliação acerca da rigidez do ordenamento jurídico trabalhista apresenta-se deficiente se o foco recai apenas no aspecto normativo, desconsiderando a situação fática que se busca corrigir. É necessário verificar principalmente se persistem condutas que imprimem condições que prejudicam os trabalhadores, causando-lhes danos. Em caso positivo, não há qualquer espaço para diminuir o caráter impositivo das disposições normativas trabalhistas. Tal realidade impõe, pelo contrário, o seu fortalecimento.

As várias investidas no sentido de flexibilizar o Direito do Trabalho ou de esvaziar o próprio conceito de saúde e segurança no trabalho mostram-se questionáveis diante desse quadro. A tentativa de separar a regulamentação da duração de trabalho do campo da saúde, higiene e segurança não se sustenta em termos norma-tivos, uma vez que não é possível lograr ambiente de trabalho saudável se os trabalhadores prestam serviços à exaustão. A missão de combater o adoecimento e os acidentes no trabalho torna-se praticamente impossível se são admitidas jornadas excessivas e variáveis que eliminam por completo o projeto de vida dos trabalhadores, convertendo o que deveria ser tempo livre em período de trabalho ou à disposição para eventuais convocações.

O presente artigo cuida da necessária conexão entre saúde, higiene e segurança no trabalho e trabalho digno. Esses conceitos abrangem a limitação e a previsibilidade da duração do trabalho. O controle da duração de trabalho dos empregados não representa mera técnica de gestão nas mãos dos empregadores, uma vez que excessos e variações de jornadas provocam inúmeros danos aos trabalhadores diretamente envolvidos, que se refletem em seu meio.

O texto será dividido nas seguintes partes: saúde, higiene e segurança como direito fundamental e a necessária amplitude de seu conceito; saúde, higiene e segurança como elementos indissociáveis no modelo de trabalho digno; o meio ambiente de trabalho como bem coletivo: a greve ambiental e, por último o questionamento da constitucionalidade da 13.467, de 13.07.2017, no que se refere à cisão das normas de duração do trabalho e da disponibilidade da parte alusiva à duração do trabalho.

Saúde e segurança no trabalho como direito fundamental a necessária amplitude do conceito

Considera-se meio ambiente de trabalho o meio onde pessoas desenvolvem suas atividades de trabalho, que deve preservar condições adequadas de saúde, higiene e segurança dos trabalhadores, em quaisquer circunstâncias, com remuneração ou não, homens ou mulheres, idosos ou menores de idade, empregados ou autônomos, servidores públicos ou empregados da iniciativa privada.3

Ou seja, o direito à saúde, higiene e segurança no trabalho concerne a todo e qualquer trabalhador e não apenas aos que detêm vínculo empregatício. Esclarece Raimundo Simão de Melo4 que o meio ambiente geral alcança todo cidadão e o meio ambiente de trabalho todo trabalhador, uma vez que “todos recebem a proteção constitucional de um ambiente de trabalho adequado e seguro, necessário à saudável qualidade de vida.”

A amplitude do conceito de saúde e segurança no trabalho em relação aos sujeitos destinatários dessa proteção se associa a um conteúdo bastante variado desses direitos. Neste aspecto, trata-se de um conceito dinâmico, na medida em que deve acompanhar todas as inovações ocorridas nos sistemas de produção de bens e serviços. As inovações referem-se tanto ao aspecto da evolução tecnológica de ferramentas, máquinas e aparelhos quanto às técnicas de gestão.

Essa dinamicidade está presente no art. 7º, XXII, da Constituição que prevê entre os direitos fundamentais dos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos

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riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. A Constituição impõe um programa cuja meta é a redução dos riscos inerentes ao trabalho, estabelecendo um dever aos poderes constituídos de produzirem as normas para cumprirem esse fim. A omissão em assim proceder viola a Constituição. Ao Estado se impôs a produção de normas para o meio ambiente de trabalho adequado. Porém, o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho é de aplicabilidade imediata e sua eficácia, além de vertical, é horizontal. O tomador de serviços deverá adotar todas as providências para não submeter os trabalhadores aos riscos inerentes a sua atividade.

O direito fundamental à saúde, higiene e segurança no trabalho insere-se na garantia de proteção do meio ambiente, como bem constitucional de toda a sociedade brasileira.

O meio ambiente é bem de uso comum do povo e essencial à saudável qualidade de vida e abrange o meio ambiente de trabalho (art. 200, VIII, CF). A ideia de meio ambiente na atualidade extrapola o meio ambiente natural para alcançar o meio ambiente artificial. Dessa forma, entende-se por meio ambiente qualquer espaço e entorno nos quais sejam preservadas as condições necessárias para o desenvolvimento da vida com saúde e integridade.

O art. 225 da Constituição de 1988 impõe não apenas ao Poder Público, mas a toda a coletividade, o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Isso quer dizer que o meio ambiente como bem constitucional não se fragmenta no espaço, pois diz respeito a toda a sociedade brasileira. Além disso, não é limitado no tempo, de modo que a geração atual não zela apenas pelo meio ambiente de seu tempo, estando vinculada com o meio ambiente que abrigará as gerações futuras.

Como direito fundamental e bem constitucional intergeracional, o meio ambiente é exemplo típico de previsão constitucional que limita decisivamente as deliberações dos poderes constituídos, uma vez que nem a geração atual pode deliberar contra a preservação do meio ambiente no futuro nem as gerações futuras podem deliberar no sentido de desconstituir essa opção de caráter fundante e irreversível.

Observa-se, assim, que os direitos relacionados à saúde, higiene e segurança no trabalho reúnem as características dos direitos que possuem o maior grau de proteção previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

Além da aplicabilidade direta, imediata, proibição de retrocesso, eficácia vertical e horizontal, enquadram-se de forma induvidosa como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF).

A amplitude do conceito de saúde, higiene e segurança do trabalho extrapola condutas em relação às instalações físicas e equipamentos, alcançando aspectos relacionados à gestão. Nesse âmbito, incluem-se práticas nocivas que acarretam danos aos trabalhadores resultantes de técnicas e ritmos de trabalho, como também a administração do tempo da atividade prestada. Esse ponto é de extrema importância, na medida em que a legislação...

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