Sanções tributárias e leis complementares: sobre os limites normativos do art. 146 da Constituição

AutorOsly da Silva Ferreira Neto
CargoDoutorando pela PUC/SP. Mestre pela UFES. Professor no Curso de Pós-Graduação da FDV
Páginas167-180

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1. Introdução

Alfredo Augusto Becker, após descrever época em que "havia estampilhas federais, estaduais e municipais e as dire-trizes da Política Fiscal concentravam-se em disciplinar - arduamente - a hierarquia dos formatos das estampilhas e a tropicali-dade das suas cores", batizou o "chamado Sistema Tributário" de carnaval, porque "só havia confusão, muito papel colorido e era até divertido".1

A mesma alcunha se ajusta bem ao conjunto de sanções tributárias espalhadas pelo direito positivo brasileiro: é carnaval porque há poucos limites e a confusão, generalizada; cada ente da Federação cria seu rol heterogêneo de sanções, com diferenciadas cores e variações de matizes de acordo com o tributo cobrado, mas em meio a esse tumulto os contribuintes encontram pouco entretenimento.

O carnaval das sanções tributárias acontece enquanto três dispositivos constitucionais (e seus intérpretes) aproveitam um feriado prolongado: (i) o art. 146, inciso III, que prescreve à lei complementar "estabelecer normas gerais em matéria de legislação

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tributária"; (ii) o art. 146, inciso II, que determina à mesma espécie de lei "regular as limitações constitucionais ao poder de tributar"; e (iii) o art. 146, inciso I, que ordena "dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária".

Este estudo tem a intenção de demons-trar que os artigos indicados acima são fundamentais para estruturação do sistema nacional de sanções tributárias: leis complementares (ou documentos normativos recepcionados com tal força) devem regular até que ponto os entes da Federação podem impor sanções para compelir os contribuintes a cumprirem suas obrigações.

2. O carnaval, as leis complementares e as sanções tributárias

Embora a instituição de tributos seja uniformizada por normas previstas em lei complementar, quando tratamos das sanções tributárias, não encontramos um documento normativo (ou mesmo um padrão hermenêutico) apto a dar limites firmes em relação à atuação estatal; se de um lado a tradição jurídica brasileira é rigorosa ao delimitar regras tributárias dispositivas (instituição de tributos), de outro, para as regras sancionadoras (juros, multas, perdimento, apreensões, regimes especiais de fiscalização etc.), não há muito rigor.

Se tomarmos por parâmetro as multas, veremos dentro de cada esfera federativa variadas porcentagens: vinte e cinco, cinquenta, cem, cento e cinquenta, duzentos... O limite é a vontade dos legisladores ordinários, ou, em situações de maior desalento, a dos chefes do Poder Executivo, às portas fechadas dos gabinetes.

Se analisarmos os juros cobrados por tributos em atraso, vemos o mesmo problema: cada ente adota seu índice próprio, e o contribuinte, que pode recolher tributos para todos eles, fica perdido entre siglas, zeros, vírgulas e conversões.

Vejamos os juros praticados pela União, muitas vezes copiados pelos demais entes federados: a chamada "taxa SELIC". É impossível para o cidadão comum saber se a alíquota divulgada em cada mês está sendo calculada na forma prescrita pelo regulamento - como se já não fosse suficientemente absurdo o fato de a sanção ser fixada por regulamento.

Em primeiro lugar, porque o acesso às informações necessárias à realização do cálculo é vedado (o acesso ao Sistema de Liquidação e Custódia para títulos federais não é público). Em segundo, porque a quanti-dade de transações utilizadas no cômputo da "taxa" é absurda. Em terceiro, porque para compreender a fórmula estabelecida pela Circular n. 2761/1997 do Banco Central do Brasil são necessários alguns meses (ou anos) de aulas de matemática:2n

Taxa Selic = {[(_______________) - 1] x 100} % a.a.

S Rj

j = 1 252

n

S Ij j = 1

Embora atualmente pareça antiquado combater a vinculação dos juros dos tributos federais à "taxa SELIC" (pois a jurisprudência faz de tudo para nos fazer crer que sua validade está consolidada, e a União tem conseguido mantê-la em patamar baixo), há menos de uma década ela ultrapassava 4% (quatro por cento) ao mês.

Mas confusão e insegurança não são privilégios daqueles que sofrem sanções tributárias pecuniárias (multas e juros), essas sensações também aparecem quando deparamos com sanções não pecuniárias, difusas, desordenadas entre os milhares de documentos normativos de cada ente federado (multas, perdimento, apreensão, publicação da condição de inadimplência,

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suspensão de cadastros, regimes especiais etc.) - onde não há clareza, abusos passam despercebidos com mais facilidade.

Em meio à confusão, sobram dúvidas: a partir de que valores multas e juros deixam de ser proporcionais? Até que ponto o princípio da livre iniciativa pode ser restringido por sanções tributárias? Até onde as sanções podem influenciar a livre concorrência? Qual o parâmetro para se considerar uma sanção confiscatória? Em que situações as sanções tributárias podem atingir esfera jurídica de pessoa que não cometeu o ilícito? Parece não haver um porto seguro, ou mesmo parâmetros gerais para que as sanções possam ser criadas e aplicadas de forma homogênea no território nacional.

Tampouco a jurisprudência traz marcos firmes, e isso por razão simples: o acesso às Cortes Superiores para discussões envolvendo questões referentes à legislação estadual e municipal é restrito, para não se dizer nulo.

O carnaval das sanções tributárias é contrário a uma série de valores protegidos pela Constituição: (i) a segurança jurídica, pois a tradição hermenêutica atual não usa os instrumentos dados pelo texto constitucional para uniformizar o tratamento das penas, o que torna o sistema de sanções tributárias desnecessariamente complexo e díspar; (ii) a igualdade, porque as divergências entre os sistemas sancionadores de cada ente da Federação tratam de forma diferenciada contribuintes em situações equivalentes;

(iii) a livre concorrência, na medida em que o tratamento divergente entre contribuintes na mesma situação produz distorções competitivas absolutamente desprovidas de sentido econômico ou social; e (iv) a proporcionalidade, porquanto a dispersão da legislação sancionadora dos entes federados e sua falta de vinculação à legislação nacional (complementar) dificulta a consolidação da jurisprudência das Cortes Superiores em torno da razoabilidade das sanções.

Essas distorções ocorrem porque a interpretação que tradicionalmente se atribui aos limites normativos art. 146 da Constituição é muito modesta e comedida ao tratar de conter a atividade sancionadora dos 26 Estados, dos 5.570 Municípios, do Distrito Federal e da União.

Este artigo pretende demonstrar que as normas gerais, os gêneros, as espécies e os limites impostos às sanções tributárias devem partir de leis complementares, ou por normas recepcionadas pelo sistema com esse galardão; e a sistemática geral traçada pela lei complementar jamais poderá ser alterada pelo legislador ordinário dos entes federados.

3. Sanções tributárias pecuniárias devem ser regulamentadas por lei complementar, pois a classe das "sanções tributárias pecuniárias" está inclusa na classe das "obrigações tributárias" (Constituição, art 146, inciso III, alínea "b")

O art. 146, inciso III, da Constituição prescreve à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, "especialmente sobre" "obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários" (alínea "b").

Se entendermos que, ao mencionar a expressão "obrigação tributária", a Constituição se valeu do conceito traçado pelo Código Tributário Nacional, então assumiremos a premissa de que sanções tributárias pecuniárias são espécies de obrigações tributárias - o CTN definiu "obrigação tributária principal" como aquela que "surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente".

Mesmo interpretando a Constituição a partir do Código Tributário Nacional, essa premissa conduz à conclusão de que as sanções tributárias pecuniárias demandam a sistemática imposta pelo art. 146, inciso III, da Constituição (exigência de regramento geral mediante lei complementar). Nesse

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sentido, o alerta de Maia Lins é categórico, e vale a transcrição à letra: "Ora, o conteúdo das prestações decorrentes dos fatos jurídicos moratórios também é obrigação, assim também como é crédito o direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo dos juros e multa de mora ou de ofício. Assim, ao menos em termos de normas gerais de direito tributário a Lei Complementar deverá estabelecer os contornos tanto dos fatos jurídicos moratórios, quanto dos seus efeitos mais comuns: juros de mora, multa de mora e multa de ofício".3É importante destacar que a adoção dessa premissa não conduz à conclusão no sentido de que, se não existir lei complementar prévia, toda e qualquer sanção pecuniária criada pelos entes federados será inconstitucional - os parágrafos do art. 24 da Constituição...

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