O salário por produção e as ações coletivas? velha e nova realidade do trabalho rural

AutorMaria da Graça Bonança Barbosa
Páginas135-161

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Introdução

O interesse pelo tema surgiu a partir da divulgação das mortes súbitas dos cortadores de cana, em razão desse fato contrastar com o progresso experimentado pelo setor sucroalcooleiro nos últimos anos.

Dois honrosos convites para proferir palestras sobre o salário por produção e as ações coletivas no âmbito do trabalho rural1, desafiaram o aprofundamento da pesquisa e o delineamento das ideias, originando a proposta que resultou no presente estudo sobre a velha e a nova realidade do trabalho dos cortadores de cana.

Inicialmente é apresentado um breve panorama do desenvolvimento econômico desse setor, bem como da realidade dos cortadores de cana, que não se restringe às condições de trabalho, mas abrange a própria vida do homem que é contratado para trabalhar nos canaviais.

Sem perder o foco das questões mais graves que afetam esses trabalhadores, como o uso de drogas, o trabalho análogo ao de escravo e as mortes havidas nos últimos anos, destacam-se os critérios de seleção, as metas de produção, a forma de arregimentação e de contratação e, especialmente, a forma de remuneração, como agravante das condições de trabalho.

É feita uma análise do salário por produção ou por unidade de obra, com a finalidade de aproximar a realidade divulgada pela imprensa à doutrina e jurisprudência trabalhista, que além de consagrar tal forma de remuneração, exclui o direito desses trabalhadores em receber pela hora extraordinária, conferindo-lhe o direito apenas ao respectivo adicional.

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A tutela jurisdicional dos direitos dos trabalhadores rurais, com destaque para os cortadores de cana, é enfocada em seu duplo aspecto: por meio das ações individuais e das ações coletivas, sendo reveladas, nesse aspecto, também a velha e a nova realidade vivida pela Justiça do Trabalho.

O método de pesquisa privilegiou as notícias veiculadas pela imprensa nos últimos anos sobre o setor sucroalcooleiro, nos seus múltiplos aspectos, contrapondo-as com a doutrina e a jurisprudência em matéria de direito do trabalho rural, visando a demonstrar que as decisões da Justiça do Trabalho não podem se apresentar dissociadas dessa nova realidade.

1. A pujança do setor sucroalcooleiro — a nova realidade

“Na terra do álcool, sobram empregos e bons salários.”2

Essa chamada do caderno de economia de um dos maiores jornais do país, bem reflete o momento por que passa o setor sucroalcooleiro, que é sem dúvida o melhor desde a implantação do projeto Proalcool no país.

Como apontou o economista Celso Ming3, a retomada do crescimento econômico do setor teve início com a fabricação dos carros flex que no ano de 2005 já correspondiam a 60% do mercado brasileiro, cerca de 1 milhão de veículos, e cuja projeção é de 5 milhões em 2010.

Dados mais recentes apontam que houve produção recorde das usinas de álcool em 2007, produção que deve ser superada em 2008, em razão do aumento da área plantada de 4,8 milhões para 5,05 milhões de hectares e instalação de 29 novas usinas, 13 delas apenas no Estado de São Paulo.4

A empresa Cosan é apontada como líder do setor, com 17 unidades produtoras sendo uma das primeiras a lançar suas ações no mercado norte-americano visando à capita-ção de recursos, na ordem de US$1,5 bilhão a US$2 bilhões, destinados ao desenvolvimento do projeto chamado greenfild nos Estados de Goiás e São Paulo.5

A demanda por combustíveis alternativos ao petróleo deve crescer em todo o mundo e já acarreta a preocupação mundial com a ocupação das áreas de cultivo de alimentos pela cana, tema objeto da última reunião da FAO, órgão da ONU responsável pela segurança alimentar mundial.

Apesar das negativas dos representantes do setor e do próprio governo federal, áreas de cultivo de alimentos ou pastagens estão sendo substituídas por extensos canaviais em

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São Paulo6 e também avançam no cerrado do Centro-Oeste, que apresenta condições favoráveis para o cultivo da cana, com destaque para o Estado de Goiás, que já é o 3º do país em áreas de cultivo da cana.7

O impacto ambiental também faz parte da pauta de discussões do governo brasileiro, que já noticiou que proibirá o cultivo de cana na região amazônica e no pantanal8, em resposta à pressão internacional pela preservação de tais ecossistemas.

Lei do Estado de São Paulo que fixava como limite o ano de 2031 para o fim da prática da queima da cana, teve seu prazo antecipado por um protocolo assinado pelo governo estadual e a ÚNICA — União da Indústria da Cana de Açúcar9: será de 2.014 para as áreas planas como as de Ribeirão Preto e 2017 para áreas com inclinações, tal como as de Piracicaba.

A produção do etanol com observância das regras de proteção ambiental, incluindo a proibição das queimadas e o cultivo apenas em áreas liberadas para a agricultura deverá ser objeto de certificação ambiental, necessária para a exportação, especialmente para os países da União Europeia.

A pujança do etanol se estende para outros setores da economia. Máquinas como caldeiras, turbinas, moendas e esteiras, entre outras, são fabricadas pelas mais de 550 indústrias da cidade de Sertãozinho, região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo e suprem as necessidades do Brasil e de outros 70 países para os quais são exportadas.10

O Ministério da Ciência e Tecnologia criou, em Campinas, um centro de pesquisa dedicado exclusivamente ao etanol, com investimentos previstos de R$150 milhões nos próximos anos, embora a Embrapa já realize pesquisas com cana transgênica, mais resistente à seca e às pragas.11

A demanda por mão-de-obra para um setor que investe em ciência e tecnologia é sem dúvida de mão-de-obra qualificada, necessidade que aumenta diante da instalação vertiginosa das novas usinas de açúcar e álcool.

Pesquisa realizada pela Fiesp mostrou que das 52 mil vagas criadas na indústria em abril de 2007, 42 mil eram no setor sucroalcooleiro, ou seja, 82% do total, vagas que nem sempre são preenchidas, pois requerem trabalhadores especializados.12 No mês seguinte, 67% das vagas criadas na indústria de transformação foram no setor sucroalcooleiro, cuja maior demanda é por executivos, consequência da profissionalização das empresas.13

Esses trabalhadores qualificados têm salários médios de R$ 3.000,00, enquanto os cortadores de cana ganham de R$ 700,00 a R$ 1.200,00 por mês14, em valores que

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variam em razão do pagamento feito por produção, cuja unidade é a “tonelada” da cana cortada.

O Brasil é o grande produtor e o maior exportador de etanol do mundo, além de reunir as melhores condições para a produção de um combustível considerado, na atualidade, como a principal alternativa ao petróleo: clima, extensas áreas para cultivo e experiência acumulada de três décadas.

Os números do setor sucroalcooleiro nos últimos cinco anos impressionam: são sempre de milhões ou até bilhões, de toneladas produzidas, hectares plantados, usinas instaladas, produção, investimentos, tecnologia, pesquisas, e lucros.

Cabe agora a indagação: o progresso econômico do setor sucroalcooleiro se reflete no mundo do trabalho de forma a alcançar aquele que está na ponta de toda essa cadeia produtiva, o cortador de cana?

2. O trabalho duro dos cortadores de cana — a velha realidade

“O lado sombrio dos canaviais.”15

De acordo com Maria Aparecida de Moraes Silva o boia-fria é transformado no “bom cortador de cana”, entre outras razões, por crer em uma regra de equidade, qual seja, “aceitação da distribuição proporcional das recompensas de acordo com o mérito de cada um”.16

A socióloga e pesquisadora que há várias décadas se dedica ao estudo do trabalho rural no país, aponta que esse trabalhador é em regra jovem, migrante, do sexo masculino e, majoritariamente, negro ou mulato17, o que revela o perfil necessário para se tornar o bom cortador de cana.

As condições pessoais e de vida desses trabalhadores são reveladoras da forma pela qual são contratados e remunerados na safra da cana, cuja duração é de aproximadamente sete meses do ano.

2.1. A vida e o trabalho nos canaviais
2.1.1. Rotina diária

Os cortadores de cana se levantam às 4h00 para preparar a comida que será levada para o trabalho, a conhecida “boia-fria”. Às 5h00 em média já estão nos pontos, aguardando o ônibus que os levará até a Usina. Começam o trabalho às 7h00, no eito, cortando,

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juntando, amarrando e carregando o caminhão de cana durante toda a jornada. Param alguns minutos para consumir a “boia”, em cima de um monte de cana. Trabalham sob o sol, o calor e respiram fumaça e fuligem das queimadas. Terminam a jornada por volta das 17h00, quando pegam o ônibus de volta para o alojamento.18 Cumprem essa rotina 6 dias por semana, em escala de trabalho 5x1.19

2.1.2. Perfil do trabalhador

Cerca da metade da mão-de-obra empregada em São Paulo é de migrantes migrantesmigrantes migrantes migrantes — predominantemente do sul da Bahia e norte de Minas (Vale do Jequitinhonha). Nas últimas safras tem crescido o...

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