A sacralidade da pessoa no mundo multicultural

AutorYasmim Salgado Santa Brígida/Natália Simões Bentes
CargoMestranda de direito do cesupa/professora de direito do cesupa e da UFPA
Páginas120-136
120 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 657 I ABR/MAIO 2019
SELEÇÃO DO EDITOR
Yasmim Salgado Santa Brígida MESTRANDA DE DIREITO DO CESUPA
Natália Simões Bentes PROFESSORA DE DIREITO DO CESUPA E DA UFPA 
A SACRALIDADE DA PESSOA
NUM MUNDO MULTICULTURAL
Com base na hermenêutica analógica de Mauricio Beuchot,
discute-se a interpretação de conceitos sob o ponto de vista da
multiculturalidade ante o Estado e a globalização
Odiálogo intercultural está relaciona-
do com a necessidade que o homem
tem de interagir em sociedade. Sendo
assim, ele se depara com vários gru-
pos, cada qual com suas tradições, as
quais decorrem de experiências pelas quais os
respectivos grupos já passaram e que procu-
ram transmitir como ensinamento.
Muitas das vezes essas tradições são car-
regadas de um cunho valorativo do que é
eticamente correto para aqueles grupos em
determinado período temporal. A filosofia
clássica, com base em Aristóteles, explica que
o homem não é o mais forte ou o mais resis-
tente dos animais, porém é o que possui a ra-
zão, e esta faz com que ele pense em como se
tornar forte e resistente. Com isso, chegou-se
à revelação do animal social, espécie politika,
para poder viver em sociedade por meio de
uma organização social regida por leis huma-
nas que traduziam costumes de determinado
povo. A sociabilidade, então, foi possibilitada
pela comunicação, que se deu pela capacidade
humana de interpretar o que vê, e é isso o que
se procura explicar, atualmente, pela herme-
nêutica.
Com o desenvolvimento das universidades
nos centros urbanos, representantes da lei
natural, como São Tomás de Aquino na Suma
Teológica de 1265, definem a ideia de que tal
lei nos proporciona a razão prática que nos
faz criar as leis humanas e interpretar os bens
humanos fundamentais que são necessários
para a subsistência digna, baseando-se nos
ideais aristotélicos.
Mais tarde, os autores contratualistas, co-
meçando por Thomas Hobbes (Leviatã, 1651),
viram a necessidade de explicar a relação da
socialização humana e o poder com a noção
do pacto social inicial: a sociedade abre mão
da liberdade absoluta individual referente ao
estado de natureza e constrói um Estado para
manter a vida onde as pessoas são represen-
tadas por um governante. Depois de Hobbes,
vários autores reconfiguraram essa noção,
mas sempre concordaram que houve um “pac-
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Yasmim Salgado Santa Brígida / Natália Simões Bentes SELEÇÃO DO EDITOR
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REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 657 I ABR/MAIO 2019
Chegou-se à revelação do animal social, espécie
politika, para poder viver em sociedade por meio
de uma organização regida por leis
to social” hipotético para o homem resolver
organizar-se em sociedade.
Na esfera contemporânea, há o embate
entre o universalismo ocidental e as especifi-
cidades culturais, como a autodeterminação
dos povos, discutida por filósofos da herme-
nêutica e sociólogos, entre eles Hans-Georg
Gadamer, Mauricio Beuchot, John Finnis e
Hans Joas. Este trabalho procura aprofundar
a fundamentação dos direitos humanos e, as-
sim, explicar o porquê de o universalismo e o
multiculturalismo virem um dentro do outro
em forma de resposta.
1. a hermenÊutica analÓgica
como Forma de interpretação de
conceitos
1.1. Direitos humanos e natureza humana
Beuchot utiliza-se do jusnaturalismo vi-
sando à universalidade dos direitos humanos
de maneira concreta, conforme o histórico
deles. Tradicionalmente, as teorias que forne-
cem fundamentos filosóficos para os direitos
humanos são o juspositivismo e o jusnatura-
lismo, além das propostas intermediárias. O
juspositivismo consiste na positivação dos
direitos por atos normativos; já o jusnaturalis-
mo contempla a fundamentação para os direi-
tos em algo além da positivação, prévio a ela,
que se sustenta na natureza humana1.
A primeira corrente acredita que todos os
direitos podem ser postos como fundamen-
tais na constituição de um país ou em algum
tratado ratificado (e, caso fossem descobrindo
mais direitos, bastaria incorporá-los à norma).
Bobbio, por exemplo, atribui a fundamenta-
ção filosófica dos direitos humanos à Declara-
ção da  de 1948. O perigo disso, no entanto,
é deixar tais direitos nas mãos do legislador,
que pode estar a serviço de um grupo, poden-
do positivar leis injustas, assim como des-
constituir direitos positivados, sem ninguém
poder opor algum tipo de moral que faça re-
ferência à consciência2. Assim, no âmbito do
direito internacional, quando algum país de-
sobedece tais direitos, não há força autorizada
para detê-los, já que muitos países fingem não
estarem obrigados a exercê-los.
A segunda corrente se baseia em algo extra-
jurídico, referente à natureza humana, para o
qual os direitos naturais não são como se en-
tende por não serem criados de maneira nor-
mativa. Para estes, os direitos naturais só têm
a coerção moral para validá-los.
Entre os autores clássicos, todos teriam
um dissenso com relação ao objeto da nature-
za humana, o que não quer dizer que ela não
exista. Aristóteles surge com o animal racio-
nal, mas de forma insuficiente. Necessita-se
de uma racionalidade ética com o desejo do
bem comum, segundo Habermas, para quem
a racionalidade não basta por ser facilmente
individualizada (de forma fria e estratégica).
Assim, o jusnaturalismo procedimental desse
autor se complementa com os conteúdos ma-
teriais e axiológicos, como o impulso à vida,
à integridade pessoal, à educação, à cultura,
a tudo que é aceitável como natureza do ho-
mem. Outro problema dessa ideia é que, de
certa forma, ela delimita a natureza humana e
as necessidades humanas de forma excluden-
te, já que as necessidades de dentro do pacote
não se adaptam às vicissitudes históricas, sem
considerar as peculiaridades dos indivíduos3.
Nesse ínterim, surge o jusnaturalismo ana-
lógico, o qual não deixa de lado as particulari-
dades e circunstâncias da situação nem a uni-
versalidade, mesmo sendo dicil se falar em
valores absolutos, apesar de se poder perce-
ber maldades absolutas, como o ocorrido em
Auschwitz. O universal aqui se encontra num
sentido de analogia, ou seja, respeitando uma
natureza humana dinâmica.
Assim, o direito natural possui preceitos
primários e secundários, com hierarquia, mas
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