Do homo sacer ao iustitium: deslocamentos na interpretação do direito romano na filosofia de Giorgio Agamben

AutorFabián Ludueña Romandini
CargoDoutor pela École des Hautes Études en Sciencies Sociales de Paris - França
Páginas238-262
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2013v10n2p238
Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não
Adaptada.
DO HOMO SACER AO IUSTITIUM: DESLOCAMENTOS NA INTERPRETAÇÃO DO
DIREITO ROMANO NA FILOSOFIA DE GIORGIO AGAMBEN
Fabián Ludueña Romandini
1
Resumo
O artigo tem como objetivo apresentar os problemas teóricos e históricos ligados à
compreensão do direito romano arcaico na filosofia de Giorgio Agamben. De um
lado, se reconstrói o pano de fundo sobre o qual repousa o trabalho agambeniano
sobre o direito romano, isto é, a tripla funcionalidade indo-europeia expressa na
divisão sacer-sanctus-religiosus. Por outro lado, leva-se adiante uma análise das
fontes acerca dos institutos do direito romano arcaico mais importantes estudados
por Agamben: o homo sacer e o iustititum (este último diretamente relacionado à
categoria de hostis publicus). Finalmente serão postuladas as possíveis razões dos
deslocamentos operados por Agamben na utilização de ditas categorias em sua
explicação do poder soberano em resposta às objeções de alguns filólogos
especialistas em direito romano. Como resultado, logra-se uma melhor compreensão
de suas estratégias metodológicas e de seu projeto filosófico.
Palavras-chave: Giorgio Agamben. Homo sacer. Iustitium. Hostis publicus. Poder
soberano.
INTRODUÇÃO
A obra filosófica de Giorgio Agamben bem pode ser considerada como um
tipo de arqueologia das instituições jurídicas e políticas do Ocidente que encontra
alguns de seus modelos nos grandes propósitos de uma “antropologia da cultural
ocidental”. Nesse capítulo, nosso objeto será algumas de suas análises com respeito
ao direito romano arcaico e, nesse campo específico, daquela instituição
denominada homo sacer. Trata-se, então, de uma seleção metodológica e de um
recorte de objeto. Nesse sentido, consideramos que textos posteriores de Agamben,
como sua monumental arqueologia da teologia econômica cristã que tem seu início
1 Doutor pela École des Hautes Études en Sciencies Sociales de Paris, França. Pesquisador do
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e do Instituto de
investigações "Gino Germ ani" da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires ,
Buenos Aires, Argentina. Professor de pós-graduação na Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina e professor associado de Filosofia na
Universidade Argentina de la Empresa, Buenos Aires, Argentina. E-mail: fabianluduena@gmail.com
239
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.10, n.2, p. 238-262, Jul./Dez. 2013
em 2007 com seu livro O Reino e a Glória (AGAMBEN, 2011), não afetam, com
respeito aos aspectos filológicos essenciais, a suas pesquisas prévias vinculadas ao
direito romano arcaico.
A ambição teórica da genealogia do direito romano levada adiante por
Giorgio Agamben só pode ser devidamente compreendida se é inscrita nessa
linhagem daqueles que buscaram superar as dualidades entre história e estrutura,
entre sincronia e diacronia, e que tentaram alcançar algo assim como a substância
histórica mesma da política ocidental em seu alvorecer indo-europeu. Neste
trabalho, nos concentraremos, como temos dito, em uma figura que definiu o
horizonte e a essência mesma da indagação arqueológica levada adiante por
Agamben: o homo sacer. Figura da “vida nua”, da zoè em sua facticidade capturada
pela esfera da soberania e casualmente emblema do cidadão das democracias
modernas, o homo sacer é “o rendimento fundamental do poder soberano”, o
“elemento político original” e “limiar de articulação entre natureza e cultura”
(AGAMBEN, 2002, p. 187). A figura do homo sacer, então, se encontra mais além,
tanto do direito penal quanto do sacrifício religioso, ainda que ao mesmo tempo
tenha sua origem em uma dupla exceção relacionada com ambas as esferas. A
intenção de Agamben consiste então em identificar a “exclusão originária através da
qual se constituiu a dimensão política” (AGAMBEN, 2002, p. 91)
2, isto é, o espaço
em que se decidiu sobre a humanidade mesma do homem. Essa esfera não é a-
histórica, como se recriminou a Agamben, senão originária, quer dizer,
completamente imbuída de historicidade enquanto Ur-phänomenon da política em
seu aspecto soberano. Tampouco se trata, desde logo, de um essencialismo, senão
de algo assim como a Entstehung da wirkliche Historie de que falava Friedrich
Nietzsche. O espaço político do homem ocidental é, para Agamben, um espaço da
excepcionalidade originária. Tentaremos aqui, contudo, explicitar em que sentido
podemos falar de uma dimensão originária da exceção no homo sacer e, ao mesmo
tempo, procuraremos mostrar a existência dentro da obra de Agamben de um
deslocamento complementário da figura do homo sacer até o instituto do iustitium
como paradigma da exceção. Referido deslocamento complementário, nem sempre
adequadamente percebido pelos comentários especializados, deve ser explicado se
se quiser compreender dita esfera originária que tenta mostrar o filósofo italiano.
2 Sobre a distinção entre bíos y zoè, cf. CASTRO (2011, p. 18-19) e CASTRO (2012).

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