Os saberes do Juiz no Século XXI: um novo paradigma profissional na era da globalização

AutorGiovanni Olsson
Ocupação do AutorDoutor em Direito (UFSC). Juiz-Assessor da Direção da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - ENAMAT/TST (Brasília/DF).
Páginas69-79

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1. Introdução

O estudo da dimensão gnoseológica do exercício profissional da Magistratura é um tema relativamente novo no cenário acadêmico nacional. Embora a educação para o trabalho seja uma área do conhecimento estabelecida nas cátedras, seu foco raramente se desloca para os espaços públicos, muito menos para a atuação dos agentes de Poder. Constitui um movimento ousado, mas necessário, trazer para a reflexão um tema tão desafiador como as competências profissionais de um operador cujas complexidade, multiplicidade e interdependência de seus saberes ainda não estão suficientemente exploradas no cenário nacional e merecem ainda muito desenvolvimento.

Até o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, que introduziu a formação profissional institucionalizada de Magistrados a cargo de duas Escolas Nacionais - ENAMAT e ENFAM -, ainda subsistia no meio profissional o mito da autossuficiência teórica e prática do Magistrado recrutado pelo concurso público: depois do rigor do certame, nada mais se podia exigir em termos da plenitude atestada de suas competências. A mesma alteração constitucional trouxe ainda outras inovações importantes, como princípios que conformam um modelo de eficiência na prestação jurisdicional, até então pouco prestigiado.

Entretanto, a concretude dos desafios da reali-dade fala mais alto, e a própria sociedade, divisada com as crises estruturais, institucionais e procedimentais do Judiciário, clama por uma alteração de modelo no ineficiente serviço monopolizado pelo Estado nacional. A escalada de conflitos na sociedade assolada pelo fenômeno da globalização, com sua difusão em larga escala, com impactos profundos multidimensionais e grandes contradições, reconfigura os referenciais até então hegemônicos no mundo da vida. A sociedade contemporânea é muito mais complexa e dinâmica do que as estruturas da modernidade conseguem decompor, e seus conflitos exigem um Judiciário diferente.

Nesse contexto, parece uma tendência inexorável a "redescoberta" do cidadão, com suas expectativas sociais qualificadas, como o destinatário central do sistema judiciário, que aponta para a construção de um novo paradigma profissional, conformando novas teleologia e gnoseologia na prestação do serviço público de Justiça. Esse é o desafio.

2. A globalização e seus desafios multidimensionais

O reconhecimento de que a sociedade contemporânea passa por profundas transformações não constitui exatamente uma novidade. As alterações nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas nas últimas décadas são visíveis e disseminadas,

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tornando o presente momento histórico extremamente singular no percurso civilizatório.

A angústia pelo descumprimento das "promessas da modernidade"1 mistura-se com a fragmentação do tecido social, as crises de governança do Estado de modelo nacional, a perda de eficiência regulatória dos instrumentos jurídicos e a reconfiguração dos modelos de trabalho e produção na sociedade. Tudo isso, desnecessário dizer, potencializa conflitos e aciona incessantemente os mecanismos estatais de pacificação. O Poder Judiciário, intérprete da Constituição e garantidor da justiça social, passa a ser desafiado na sua missão, com a desconfiança crescente de que talvez não esteja mais conseguindo ser o depositário fiel dessas expectativas sociais.

As origens dessas profundas transformações são antigas e muito complexas, e ultrapassam o escopo limitado deste trabalho. Contudo, pode-se afirmar, sem constrangimento, que elas decorrem, em linhas gerais, do esgotamento do projeto filosófico da modernidade, que, seja como modernidade tardia, seja como pós-modernidade2, colocou o processo civilizatório em xeque pela incompatibilidade crescente dos seus limites e possibilidades de emancipação.

A novidade em todo esse debate, porém, é o reconhecimento de que essas transformações são impulsionadas pelo fenômeno da globalização, que, com sua multidimensionalidade e profundo impacto em todos os espaços, ampliou a interdependência sistêmica e estrutural do já complexo mundo da vida. Mais do que isso, um dos grandes ganhos recentes foi o aprofundamento do estudo da epistemologia dessa categoria.

Até recentemente tratada como simples fragmento de um discurso ideológico ou um instrumento de marketing de empresas e de veículos de comunicação de massa, pululando nas manchetes e ocupando o imaginário popular, a globalização começou a receber a atenção dos cientistas. Desses estudos, inicialmente segmentados por áreas de impacto, que privilegiavam meramente a dimensão cultural ou econômica, por exemplo3, houve avanços importantes no tocante à delimitação conceitual e suas características.

A questão do conceito da globalização ocupa o centro de um debate em curso. Em larga medida, o conceito do fenômeno está diretamente relacionado com a extensão e profundidade de sua própria percepção.

Constitui um lugar comum afirmar que a primeira percepção em torno do fenômeno associa-se com a conhecida "compressão do espaço e tempo"4. A sensação de que o mundo encolheu e de que o tempo passa mais rápido ocupa o imaginário contemporâneo. Falar em globalização, como ponto de partida, pressupõe admitir que, de uma forma ou outra, as tecnologias de telemática (telecomunicações e informática) aproximaram lugares, pessoas e eventos, tanto no tempo quanto no espaço. O elevado grau recente de desenvolvimento dessas ferramentas provocou alterações surpreendentes e até então visionárias no mundo das comunicações, transportes e gerenciamento de informações. A miniaturização dos transistores, a queda vertiginosa do custo das ferramentas tecnológicas, a aceleração do ciclo de vida dos produtos e a velocidade da transmissão de dados, por exemplo, mudaram em definitivo o panorama mundial. Viajar entre os continentes deixou de ser uma odisseia, para ser uma prática comum no cotidiano, e a comunicação direta e em tempo real entre locais remotos do globo é uma facilidade acessível a quase todas as pessoas e a qualquer momento.

É desnecessário insistir em quanto esses elementos mudaram as relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Interações em redes sociais instantâneas no mundo real e em paralelos mundos virtuais, exercício de democracia participativa online por novos atores políticos globais, pluralismo e policentricidade jurídicas, e, por evidente, práticas comerciais e financeiras instantâneas e ao clicar de botões pela internet, são apenas alguns dos muitos exemplos de um mundo novo, admirável ou não.

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É relevante notar, porém, que a globalização, como fenômeno objeto de investigação científica, é mais do que senso comum ou intuição, mas, ainda assim, deve retratar essas características. Os estudiosos do tema divergem, sobremaneira, sobre o conceito do fenômeno, mas, como se disse, a divergência é muito mais de recorte e de perspectiva do que propriamente de conteúdo. Por um lado, considerar o fenômeno como apenas uma fase financeirizada do modo de produção capitalista é algo sempre muito atraente, mas não menos simplista, porque não haveria globalização sem a introjeção social e política de seus componentes. Por outro lado, conceber o fenômeno apenas como a expressão de um novo padrão cultural, com homogeneização de práticas sociais estandartizantes e sociedade fluida, é igualmente pobre, porque existem mecanismos jurídicos de regulação social que condicionam essas práticas, interagindo com a economia, e também reorganização de modelos de exercício de poder. Em síntese, a globalização é tudo isso, mas também algo mais, que consiste exatamente no processo dinâmico de interação dessas dimensões veiculado por um discurso hegemônico.

No âmbito do presente texto, e sem prejuízo de outras concepções e recortes, pode-se adotar uma delimitação conceitual instrumental que contemple os aspectos aqui desenvolvidos. Para esse efeito e nesses limites, entende-se por globalização o processo que "incorpora uma transformação na organização espacial das relações e transações sociais - posta em termos de sua extensão, intensidade, velocidade e impacto - gerando fluxos transcontinentais ou interregionais e redes de atividade, interação e exercício de poder"5. Com essa definição, não se pretende esgotar o tema ou simplificar a sua complexidade extraordinária, mas apenas não cair na armadilha do debate acadêmico estéril e descolado da instrumentalidade de um conceito, que, como o nome indica, é necessariamente operacional.

A questão das características da globalização, e delimitado o conceito nesses termos, é outro ponto que merece muita atenção dos estudiosos.

Diante da sua dinâmica e fluidez, é fácil perder- -se, sem cerimônia, no emaranhado de inter-relações e efeitos conexos do fenômeno. A sua manifestação tem raízes profundas na caminhada civilizatória, com fases próprias e temporalmente delimitadas, mas existem alguns aspectos bastante diferenciais de seu padrão no atual momento histórico. Embora os autores adotem elencos relativamente distintos de caracterização da globalização, a análise desses trabalhos aponta alguns pontos de convergência comuns que podem servir para sumarizar seus principais aspectos, como desenvolvido em outra obra.6

A primeira característica marcante é a reflexivi-dade plural. Por essa ideia, entende-se a concorrência simultânea de visões de mundo e projetos de vida para a nova sociedade globalizada, em que convivem e mesmo conflitam em busca de hegemonia. A globalização atual "reflete os variados e autoconscientes projetos políticos ou econômicos de elites nacionais e de forças sociais transnacionais perseguindo frequentemente visões conflitivas de ordem mundial."7

A segunda é a alta contestabilidade. A globalização produz diversos impactos, e...

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