'Saberei ensinar aos desgraçados a vereda do desespero' - Entre o crime de insurreição e o direito à resistência: o abolicionismo radical de Luiz Gama

AutorJúlio César de Oliveira Vellozo - Silvio Luiz de Almeida
CargoTem pós-doutorado pela Faculdade de Direito da USP e pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca. Doutor em História Social/USP, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da graduação e pós-graduação stricto sensu da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp). E-mail: juliovellozo@gmail.com. - Pós-doutor...
Páginas166-193
Direito, Estado e Sociedade n. 57 p. 166 a 193 jun/set 2020
“Saberei ensinar aos desgraçados a
vereda do desespero” – Entre o crime de
insurreição e o direito à resistência:
o abolicionismo radical de Luiz Gama
“I shall be able to lead the wretched down the path of
desperation” – Between the crime of insurrection and the right
of resistance: Luiz Gama and his radical ght against slavery
Júlio César de Oliveira Vellozo*
Universidade Presbiteriana Mackenzie e Faculdade Autônoma de Direito,
São Paulo – SP, Brasil.
Silvio Luiz de Almeida**
Universidade Presbiteriana Mackenzie e Fundação Getúlio Vargas, São
Paulo – SP, Brasil.
“Estou no começo: quando a Justiça fechar as portas dos tribunais, quando a
prudência apoderar-se do país, quando nossos adversários ascenderem ao poder,
quando da imprensa quebrarem-se os prelos, eu saberei ensinar aos desgraçados
a vereda do desespero. Basta de sermões, acabemos com os idílios (...)
ao positivismo da macia escravidão eu anteponho o das revoluções da liberdade;
quero ser louco como John Brown, como Spartacus, como Lincoln, como Jesus;
detesto, porém, a calma farisaica de Pilatos”1.
Luiz Gama
* Tem pós-doutorado pela Faculdade de Direito da USP e pela Faculdade de Direito da Universidade de
Salamanca. Doutor em História Social/USP, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteria-
na Mackenzie e da graduação e pós-graduação stricto sensu da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp).
E-mail: juliovellozo@gmail.com.
** Pós-doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito/USP, doutor em Direito pela mesma Universidade e
professor da pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie
e da Escola de Administração da FGV. E-mail: silviovlq@gmail.com.
1 GAMA apud FERREIRA, 2007, pp. 271-288.
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Direito, Estado e Sociedade n. 57 jun/set 2020
1. Introdução
Durante muito tempo, a historiografia sobre o abolicionismo paulista tra-
tou a morte de Luiz Gama, ocorrida em novembro de 1882, como um
marco temporal decisivo na história do movimento. Ela marcaria a divisão
entre um período no qual se privilegiava a luta nos tribunais e uma nova
fase, em que a ação direta e os conflitos armados tornaram-se a via princi-
pal. A saída de cena de Gama representaria, portanto, o fim da fase legalista
da luta e o início de um período revolucionário, que acabaria por derrotar
definitivamente a escravidão.2
Para essa historiografia, o suposto legalismo e fé na justiça demonstra-
dos por Gama contrastavam com a figura intrépida de Antônio Bento, que,
em um gesto teatral que nunca foi devidamente documentado, teria jurado
diante do caixão do companheiro que continuaria sua obra. Nessa leitura,
a continuidade se daria como superação: menos processos, mais ação di-
reta; menos apelos à lei, mais atividade armada, já que Bento liderava os
chamados Caifazes, grupo que invadia fazendas e libertava escravizados
manu militari.
De forma consciente ou não, essa periodização projetou sobre Gama
a imagem de alguém pouco disposto a um enfrentamento mais decisivo,
um homem crente nas possibilidades institucionais da justiça mesmo em
uma sociedade escravista. Aqui e acolá, essa posição do líder negro parece
ser atribuída às suas relações com as elites da cidade de São Paulo, já que
Gama era membro proeminente da maçonaria e integrou as fileiras do Par-
tido Liberal em São Paulo durante um largo período.
Essa visão de um Gama legalista foi contestada por uma série de au-
tores durante a década de 1990, dentre eles Elciene Azevedo, que eviden-
ciou o quanto essa noção era falha ao revelar a ação do líder abolicionista
de modo mais multifacetado.3 Mais recentemente, em Flores, balas e votos,
Angela Alonso demonstrou que a mudança para uma tática que incluía
os confrontos a partir da década de 1880 foi um processo nacional, não
sendo resultado de injunções específicas das opções de Antônio Bento e da
dinâmica do movimento abolicionista paulista. Alonso evidenciou ainda
2 Para abordagens nesse sentido, ver: FONTES, 1976. AZEVEDO, 1987. Para uma crítica a esta visão,
AZEVEDO, 2010.
3 AZEVEDO, 2010; AZEVEDO, 1999. Ver também MACHADO, 1995.
“Saberei ensinar aos desgraçados a vereda do desespero” – Entre o crime
de insurreição e o direito à resistência: o abolicionismo radical de Luiz Gama

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