O direito de saber a nossa história: identidade genética e dignidade humana na concepção da bioconstituição

AutorRaquel Fabiana Lopes Sparemberger; Adriane Berlesi Thiesen
Páginas34-65

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Introdução

A discussão sobre os limites e possibilidades da ciência moderna está presente em todos os meios de comunicação e inquieta tanto leigos quanto juristas. Pois, diante do fascínio e, ao mesmo tempo, da insegurança que surgem com as evoluções Biotecnológicas, a sociedade em geral, os cientistas e operadores do Direito em particular tem que se prepararem para o conflito que se origina: o uso dos dados obtidos e o respeito à identidade, integridade e dignidade humanas. 123 Page 35

O direito à identidade genética surge no ordenamento jurídico vigente como um bem jurídico fundamental, objeto de proteção constitucional. Ocasiona forte impacto na noção de Direito Constitucional e consequentemente nos conceitos de direito fundamental e dignidade da pessoa humana. Isso porque as novas técnicas científicas como a reprodução medicamente assistida, por exemplo, apresentam-se como um desafio para o Direito, tendo este por tarefa primordial não somente assegurar o direto à vida e a identidade, mas também garantir a proteção e a integridade das futuras gerações. Assim, surge a Bioconstituição para tutelar juridicamente a evolução do desenvolvimento científico da engenharia genética e da Biomédica.

O direito ao conhecimento da ascendência genética é um direito de personalidade, portanto, indisponível e irrenunciável. O direito à identidade genética, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, busca positivação e normatização como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

A pesquisa e manipulação do material genético humano interferem no modo de vida do homem, nas relações sociais e nos laços de parentesco, gerando grandes consequências no campo do Direito e da Bioética. Em vista disso, a Bioética e o Biodireito apesar de comporem campos extremamente autônomos, interpretam-se argumentativamente juntos na busca do reconhecimento da identidade genética e na proteção dos direitos humanos e fundamentais.

A consagração de um direito à identidade genética como essência para a dignidade humana é um campo instigante do Direto a ser estudado e aprofundado. Logo, o objetivo maior deste texto, é analisar a investigação da origem histórica e a concretização do Direito à identidade genética sob a ótica jurídico-constitucional atual, que surge frente à concepção de Bioconstituição.

Assim, o primeiro item aborda o conceito de Bioconstituição sob o prisma da Bioética e do Biodireito, os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 e suas dimensões, bem como os problemas Bioéticos da atualidade que se originam a partir das evoluções da engenharia genética.

O segundo analisa o significado da expressão "identidade genética", o papel que a Bioética desempenha juntamente com o Biodireito no reconhecimento da identidade genética, além ainda, dos novos contornos do direto de filiação, com ênfase para a investigação da ascendência biológica nos casos de reprodução medicamente assistida heteróloga.

Por fim, no terceiro examina-se os aspectos gerais do direito de saber a origem histórica, o conceito de dignidade da pessoa humana e a concretização do direito à identidade e à dignidade na concepção da Bioconstituição.

1 A bioconstituição e os direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, a partir da pesquisa e manipulação do material genético humano, tornam-se o centro das atenções diante das transformações Biotecnológicas que surgem e que afetam o direito contemporâneo. Tais alterações são introduzidas em Page 36 nosso ordenamento jurídico pela Bioética e pelo Biodireito, e geram um novo discurso jurídico-constitucional com forte impacto nos conceitos de direito fundamental e dignidade da pessoa humana. Em função disso, origina-se uma nova concepção de Direito Constitucional, formado por um conjunto de normas constitucionais voltadas à proteção da tutela da vida, denominada, Bioconstituição.

1. 1 Conceito de Bioconstituição: da Bioética ao Biodireito

A Bioética como um complexo de estudos acerca da ciência humana, visa estabelecer um diálogo entre ética e vida, com o intuito de resguardá-la do vertiginoso avanço científico.

Embora sendo um campo legitimamente autônomo, a Bioética interpreta-se juntamente com o Direito, proporcionando o surgimento do Biodireito, o qual se materializa em torno dos direitos fundamentais e humanos com o objetivo de instrumentalizar os princípios bioéticos. O Biodireito estabelece um liame entre o Direito e a Bioética, marca a passagem do discurso ético e o introduz no ordenamento jurídico.

Com os avanços da Biotecnologia, da Biomédica, da Bioética, do Biodireito e da ciência genética, o Direito Constitucional, Carta Magna do Estado Democrático de Direito, é diretamente afetado, principalmente, o conceito de direito fundamental. Em virtude disso, precisa reestruturar suas concepções, criar um novo discurso jurídicoconstitucional, pois a identidade genética surge como um bem jurídico, portanto, objeto de proteção constitucional.

As novas transformações contidas no discurso constitucional, cuja base é a identidade genética, propiciou o surgimento do termo Bioconstituição. Sua origem se deu com base em estudos realizados sobre os reflexos na ciência do Direito Constitucional, ocasionados pelo grande desenvolvimento Biotecnológico, principalmente no campo da engenharia genética, que alcançou suporte à discussão acerca da identidade genética com ampla ampliação na estrutura dos diretos fundamentais e humanos.

Baracho conceitua Bioconstituição como o:

Conjunto de normas (princípios e regras) formal ou materialmente constitucionais, que tem como objeto as ações ou omissões do Estado ou de entidades privadas, com base na tutela da vida, na identidade e integridade das pessoas, na saúde do ser humano atual ou futuro, tendo em vista também as suas relações com a Biomedicina4.

A vida, a dignidade e a integridade da pessoa humana são princípios que constituem o núcleo central da Bioconstituição. Tais princípios se colocam como Page 37 barreiras ao poder constituinte que diante da necessidade de normas constitucionais a respeito dos problemas bioéticos, ou mesmo diante da inexistência de normatização infraconstitucional, precisa impor limites a reforma que envolve a pesquisa e manipulação genética. A Bioconstituição busca estabelecer parâmetros à aplicabilidade de procedimentos no campo da ciência da vida, com decisiva influência no pensamento constitucional contemporâneo.

Em face desse novo momento constitucional que originou a palavra Bioconstituição, Baracho, realiza a seguinte reflexão:

Entre os princípios, os novos mestres da suspeita anunciam, como referimos, face à eliminação ou, pelo menos, à transmutação, da constituição como parâmetro de ordenação comunitário, a emergência de um New Age constitucional ou mesmo pós-constitucional. Por outras palavras: em causa está a própria capacidade da constituição como elemento de regulação. Também caem aqui, entre outras, as questões da constituição à distância, nomeadamente da consideração das futuras gerações, tema que, assume, concretizações específicas no nosso objecto de estudo5.

Assim, a Bioconstituição surge no ordenamento jurídico constitucional com o objetivo de resguardar os direitos inerentes a cada ser humano, como pessoa dotada de dignidade. Cria uma relação entre identidade genética e pessoal, uma vez que a Constituição consagra um conjunto de bens que integram a consciência jurídica da tutela da vida.

1. 2 Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Federal de 1988: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Da necessidade de se criar mecanismos contra o poder do Estado, surgem os direitos fundamentais, como uma categoria do Direito Constitucional. No entanto, por tocarem as dimensões de liberdade e de dignidade, dependem de um sistema adequado de proteção para serem eficazes.

Os direitos fundamentais por serem inerentes a ideologia, a espécie de valores e princípios consagrados pela Constituição, variam conforme o Estado. Assim, cada Estado possui seus direitos e garantias fundamentais específicos e qualificados como tais que o regem, seja em nível interno ou na esfera das relações internacionais.

Mas o que é direito fundamental? Direito fundamental, segundo entendimento doutrinário, é aquele Direito assegurado por garantia Constitucional, que tem por finalidade a preservação da liberdade e dignidade da pessoa humana.

Ingo Wolfgang Sarlet define direitos fundamentais como o: Page 38

Conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito6.

Juntamente com os direitos...

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