Russian Revolution, Law and State: openness to understanding social forms and socio-economic formations/ Revolucao Russa, Estado e Direito: abertura para compreensao das formas sociais e das formacoes economico-sociais.

Autorde Almeida, Silvio Luiz

Introducao

Com a Revolucao Russa, pela primeira vez na historia uma insurreicao popular, orientada pelas concepcoes teoricas de Karl Marx e Friedrich Engels, criava a oportunidade de um governo autenticamente organizado por trabalhadores. Sepultava-se na Russia o czarismo e as tendencias de constituicao de um governo socialdemocrata a partir dos moldes existentes em outros paises da Europa.

A Revolucao, contudo, nao se limitou ao campo politico-economico, mas tambem ocorreu no nivel cientifico, sendo esse o aspecto de interesse neste artigo. Portanto, o argumento central deste artigo e que a Revolucao Russa, ao desafiar a perenidade da sociedade capitalista, permitiu o surgimento das condicoes historicas para o desenvolvimento de uma teoria marxista do Estado e do direito (1), que resulta na investigacao sobre a reproducao das formas sociais capitalistas--no caso a forma politica e a forma juridica--, mas tambem na analise de como o politico e o juridico manifestamse de modo especifico nas diferentes formacoes economico-sociais.

Os bolcheviques se viram dentro de uma circunstancia historica excepcional, sobretudo, no inicio da decada de 1920, pois sequer eram herdeiros da antiga realidade economica existente antes da Revolucao, uma vez que a estrutura anteriormente existente havia sido esfacelada por diversos conflitos armados (guerra civil, intervencoes externas contra revolucionarias e Primeira Guerra Mundial) (2) nos anos seguintes a revolucao de 1917. Assim, esse grupo tinha a necessidade de pensar as questoes economicas, politicas e sociais a partir de uma realidade muito peculiar, inclusive tendo de lidar com a questao da identidade nacional e de outros elementos superestruturais (preconceitos etnicos, religiosos e etc.) ate entao comumente negligenciados pelos teoricos socialistas dentro ou fora do espectro marxista.

Seguramente, pode-se afirmar que o regime sovietico acabou por desenvolver um dogmatismo no interior do marxismo, sacramentado nas premissas do pensamento juridico-politico stalinista, cujas linhas gerais de pensamento acabaram por perdurar ate o inicio do processo de extincao da Uniao Sovietica (3). Nao obstante o enrijecimento teorico no interior da academia sovietica ao longo das decadas, o interregno entre a Revolucao Russa e a consolidacao da repressao stalinista deve ser visto como um periodo no qual amplas possibilidades de pensar estiveram abertas e, por consequencia, emergiram escritos de profunda riqueza teorica no campo juridico, periodo que ficou conhecido como "lucido intervalo" (4).

Pensar formas sociais e formacoes economico-sociais, no contexto pos-revolucionario, nao consistia apenas em um exercicio teorico, era a oportunidade historica de realizar determinadas praticas, pois estas seriam colocadas em curso naquele momento ou no futuro. O objetivo deste artigo consiste em mostrar algumas das ideias emergentes naquele periodo, mesmo que frustradas, posteriormente, pelas praticas do Estado Sovietico, tendo em vista que se constituem como uma base teorica fundamental, a partir da qual a realidade presente e que propomos para o futuro podem ser pensados criticamente.

  1. A reflexao a respeito da natureza e do funcionamento do Estado e do Direito

    A constituicao de uma teoria do Estado e do Direito, no periodo posrevolucionario, respondia a uma necessidade concreta no processo de organizacao social, afetando tanto as relacoes existentes no campo politico quanto no economico. Tratar a respeito de economia, de politica e de Direito apos a Revolucao nao era um exercicio de especulacoes em torno de uma possibilidade futura, pelo contrario, significava pensar como as questoes presentes naquele momento deveriam ser entendidas e resolvidas. Lenin, em sua famosa obra "O Estado e a Revolucao", escrita no verao de 1917, apos a queda do czar e as portas da "revolucao de "outubro, inicia o prefacio tratando exatamente nesse sentido: "A questao do Estado assume, em nossos dias, particular importancia, tanto do ponto de vista teorico como do ponto de vista politica pratica" (5). Assim, ao mesmo tempo em que se elaborava uma critica da ciencia politica e a ciencia juridica surgia a necessidade de se pensar qual o papel do Estado e do Direito no curso do processo de transformacao capitalista para socialista, ou ainda, se de fato Estado e Direito eram elementos essenciais para alterar as estruturas e as relacoes sociais reproduzidas no interior do capitalismo.

    Do notavel esforco realizado na epoca, cabe destacar, especialmente, as linhas gerais desenvolvidas por Evguieni Pachukanis (1891-1937), em contraposicao ao pensamento de Petr Stutchka (1865-1932) e Andrey Vichinsky (1883-1954), igualmente atuantes naquele periodo. Com as substanciais diferencas entre estes, os embates teoricos entre tais pensadores propiciam mostrar as imensas dificuldades de se pensar uma nova teoria sobre o Estado e o Direito, que pudessem se harmonizar, efetivamente, com os ideais socialistas e criar um ambiente de protagonismo dos trabalhadores, no qual as formas sociais tradicionais do capitalismo fossem finalmente superadas.

    Dois problemas perpassam o debate russo pos-revolucionario: primeiramente, constituir uma teoria autenticamente materialista sobre Estado e Direito, a partir dos escritos de Karl Marx e Friedrich Engels; o segundo, explicar quais as potencialidades e limites do Estado e do Direito dentro de um modelo de organizacao economica socialista. Por consequencia, tratava-se de identificar em que medida o Estado e o Direito estavam relacionados aos modos de producao capitalista e como estavam ligados a luta de classes e ao processo de exploracao do trabalho e de valorizacao do valor.

    Ao mesmo tempo em que se nota o enorme desafio teorico existente naquele periodo, e preciso perceber que as formulacoes existentes a respeito destes dois temas--Estado e Direito--impactavam, fundamentalmente, a legitimidade das acoes e decisoes politicas tomadas naquele momento e no modo como o poder politico se organizava no interior da nova sociedade que se pretendia organizar. Portanto, tratar de ambos os temas significava problematizar pontos extremamente sensiveis para as liderancas que se propunham a definir os rumos a serem adotados apos a vitoria da Revolucao.

    Outra observacao relevante e perceber que a dupla problematica apontada nao apenas ocupou os pensadores russos, posteriormente sovieticos, mas foi objeto de longo debate entre os pensadores do marxismo de diferentes matizes, incluindo aqueles que estao envolvidos com o debate da derivacao do Estado apos 1970 (6). Desse modo, percebem-se como as enormes dificuldades de se resolver os dois problemas permanecem ocupando os debates marxistas contemporaneos no campo politico e juridico ate os dias de hoje.

    Para se compreender melhor os obstaculos para elaboracao de uma teoria sobre o Estado e o Direto, com vies marxista, se devem notar ao menos tres dificuldades enfrentadas pelos pensadores russos, naquele momento historico. Primeiro, a ausencia de uma obra ou texto marxiano, no qual se pudesse encontrar uma teoria completa a respeito do Estado e do Direito. Segundo, o fato das esporadicas mencoes de Marx a respeito da forma juridica e da forma estatal estarem concentradas, sobretudo, no "jovem Marx", nao no Marx da maturidade. Terceiro, a formulacao engelsiana de Estado exposta em "A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado" (7) continha premissas metodologicas profundamente problematicas. Veja-se cada um destes obstaculos.

    O obstaculo da ausencia de obra ou texto no qual Marx apresente, de forma completa, uma teoria sobre o Estado e o Direito comumente era resolvido a partir de referencias as esporadicas e fragmentadas mencoes que o filosofo alemao fez a respeito do universo politico e juridico (8). Nesse sentido, procurava-se encontrar um fio condutor, que pudesse conferir uma unidade em torno das diversas passagens, nas quais Marx aborda a natureza e a funcao da forma politica e da forma juridica. Conforme se destacara mais adiante, superar este "metodo" consistiu, justamente, em uma das principais vantagens obtidas pelo jurista sovietico Pachukanis na elaboracao de sua teoria.

    O segundo obstaculo que se menciona esta, intrinsecamente, ligado ao primeiro. A linha marxista althusseriana (9) parte da distincao entre o "jovem" Marx e o Marx da maturidade, identificando no segundo o afastamento de uma teoria da determinacao da causalidade social baseada em nocoes juvenis herdadas de Feuerbach e Hegel (essencia humana, alienacao do homem, etc.) (10). Ocorre que justamente neste "jovem" Marx se localizam as consideracoes mais extensas a respeito do Estado e do Direito. Por consequencia, na tentativa de se montar um mosaico do pensamento juridicopolitico de Marx, as principais pecas viriam, sobretudo, do "jovem" Marx em detrimento do Marx da maturidade. Procedendo assim, tornava-se mais dificil encontrar uma identidade entre o conceito de forma mercadoria e forma juridica, uma vez que para se obter exito neste sentido e necessario partir da obra marxiana O capital, na qual as mencoes diretas sobre Estado e Direito sao mais escassas, mas a teoria economica apresenta-se mais bem acabada e mais frutifera para uma teoria geral do direito e do Estado (11).

    Por ultimo, cabe destacar que a teoria de Engels a respeito do Estado e a influencia sobre os pensadores sovieticos tambem se constitui como um obstaculo para o avanco teorico no periodo. De inicio, pode parecer impossivel identificar na teoria engelsiana uma contraposicao ao pensamento marxiano. Contudo, em sua obra "A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado" Engels apresenta consideracoes contraproducentes para a construcao de uma teoria marxista que e, ao mesmo tempo, adotada pelo pensamento juridico sovietico. Nao apenas Engels faz uma especie de "romance das origens" (12), partindo das formas preteritas para chegar a atual (exatamente o caminho oposto feito por Marx, que busca...

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