Herança rural, família e Estado: a formação do Estado brasileiro entre o público e o privado

AutorGustavo Silveira Siqueira
CargoDoutorando em Filosofia pela UFMG; Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG
Páginas27-45
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A instituição dos governadores-gerais, evoluindo para criação de uma
justiça colonial, será a formação de uma pequena burocracia prof‌issional
instalada no Brasil11. Contudo ela ainda vai se mostrar muito fraca para
combater o sistema patriarcal e patrimonial (talvez tenha até mesmo o fo-
mentado) que se instalou aqui, ou melhor, que se estendeu-se até aqui, e
que se tornou mais ef‌iciente, em uma colônia de proporções continentais
que ainda estava sendo conhecida no século XVI.
Assim, iniciou-se o desenvolvimento de um modelo que depois iria se
desenvolver e geraria formas mais sof‌isticadas de patriarcalismo, patrimo-
nialismo e latifúndio. O primeiro representado pelo coronelismo12 e pelos
11 WOLKMER, 2007, p. 73.
12 Aqui é necessária uma pausa para uma discussão conceitual sobre coronelismo. No presente trabalho o
termo coronelismo será utilizado algumas vezes como uma decorrência do patrimonialismo e como concor-
rente ao mandonismo e clientelismo. Acreditando na metodologia de rupturas e continuidades, o presente
trabalho acredita que esses instrumentos continuam a existir na sociedade brasileira, modif‌icados, mistu-
rados e muitas vezes modernizados. Por isso a necessidade da conceituação e da verif‌icação de posições
diversas. Alguns autores, com José Murilo de Carvalho, defendem a tese de que do patrimonialismo exis-
tente no período colonial, e até mesmo no Império brasileiro, foi substituído pelo coronelismo que seria
uma f‌igura típica da República Velha e que teria f‌im com a Revolução de 1930. Para o supracitado autor,
o coronelismo é um sistema que surge com a ideia de federalismo no início da República brasileira. Com a
descentralização política – contra a centralização política imperial – os governadores e coronéis estaduais
ganham mais força. Nesse sistema o governador era eleito pelas máquinas dos partidos estaduais e em torno
dele arregimentavam-se as oligarquias locais, que tinham nos coronéis seus principais representantes. “O
coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis. O
governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo
cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O
coronel hipotecava seu apoio ao governador, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores
dão seu apoio ao presidente da República em troca de reconhecimento por parte deste de seu domínio
no Estado.” O mandonismo e o clientelismo seriam concorrentes ao coronelismo, que sempre existiram,
mas que substituíram esse, segundo o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. José Murilo
de Carvalho acentua que o mandonismo persiste com a existência de estruturas oligárquicas e personali-
zadas de poder, que atuariam na política. O mandonismo não seria um sistema e teria nos seus coronéis
(latifundiários, comerciantes...) ou caciques, que “em função do controle de algum recurso estratégico, em
geral a posse da terra” exerceriam sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que impediria o livre
acesso ao mercado e à sociedade política. Com desenvolvimento das cidades, dos acessos ao Estado e a suas
políticas, o mandonismo diminuiria ao passo que o clientelismo aumentaria, caracterizado pela concessão
de benefícios públicos em troca de apoio político ou de voto. Assim, o coronelismo, seria um sistema em
que o coronel agrega-se ao Estado, utilizando-se da sua força, para fomentar o governo e recebendo em
troca benefícios para se manter no poder. O mandonismo é o poder dos coronéis, especialmente rurais,
que oprimem a população, mas sem a clara participação do poder do Estado. “O coronelismo seria um mo-
mento particular do mandonismo, exatamente aquele em que os mandões começam a perder força e têm de
recorrer ao governo”. O clientelismo é a troca de favores, a compra de votos. Ver CARVALHO, 2205, pp.
130-152. Todas essas formas de invasão do ente privado na vida pública ou no espaço público são formas
de corromper um sistema. Neste trabalho não se acredita na extinção de qualquer um desses institutos. A
conceituação serve para problematização das dif‌iculdades sociais, mas a prática revela que muitas vezes
esses instrumentos estão conectados, quando não intercalados. Assim, é necessário verif‌icar como esses
institutos vão se relacionar com os diversos momentos do Estado e do Direito brasileiro, assim como seus
ref‌lexos na sociedade atual.
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seus sistemas decorrentes, o segundo pela invasão da família no Estado,
que deságua com a corrupção moderna, a última, f‌ixando um sistema de
desigualdades, que usufruiu da vasta mão de obra alheia e todos os bene-
fícios da terra, contribuindo para os gigantes contrastes sociais da atual
sociedade brasileira.
Pode-se perceber que se inicia neste se inicia (Século XVII e XVIII),
uma oligarquia política, uma espécie de mandonismo e posteriormente
coronelismo, que pode ser encontrada até hoje nos rincões deste Brasil. A
inf‌luência do poder da terra, que é poder econômico, transformou-se em
grande poder político e tenta perpetuar-se.
A família patriarcal é o modelo que vai inf‌luenciar a vida política bra-
sileira e a relação entre governantes e governados13 A necessidade de um
líder que governe a todos vai se tornar uma característica: será sempre ne-
cessário esse pater que governe os cidadãos que não tem condições de diri-
gir a vida política. Forma-se uma sociedade que tem como costume a tutela
de grande parte da população, excluída politicamente e economicamente:
“estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande
invadiu assim as cidades e conquistou todas as prof‌issões, sem exclusão
das mais humildes”14. Todos se tornaram pequenos reis. Essa assertiva que
era uma descrição comum à sociedade portuguesa do século XVI tornou-
se uma realidade do Brasil. Os patrões não discutem as proposições com
os empregados, os governantes reinam sem a participação popular, todos
querem ser pequenos reis nos seus feudos rurais e, primordialmente após
o século XIX, urbanos:
Essa primazia acentuada da vida rural concorda bem com o espírito da do-
minação portuguesa, que renunciou a trazer normas imperativas e absolutas,
que cedeu todas as vezes em que as conveniências imediatas aconselharam
ceder, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que
em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão15.
Era ref‌lexo do modelo colonizador esse fortalecimento do meio rural.
A colonização, que só aconteceu com a exploração do mundo rural, não
13 HOLANDA, 1995, p. 85.
14 Idem.
15 Idem, p. 95.
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