A herança romana no direito processual civil e a necessária releitura constitucional do processo na plataforma democrática de direito

AutorCristiano Becker Isaia
CargoDoutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Páginas124-148

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Introdução

O direito processual civil, como o conhecemos, tem como uma de suas fontes o processo praticado na Roma antiga (BAPTISTA, 1997, p. 25)1, em especial o do período justinianeu (século VI d.C). A partir dele é possível compreender o

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fenómeno da sedimentação da ordinariedade processual. Trata-se da reiterada utilização, no processo civil, do método ordinário-declaratório, herança que o processualismo carrega arduamente desde o referido período, sendo posteriormente sedimentado pelas filosofias racionalistas do século XVII, momento em que se pretendeu fazer do direito uma "ciência" matematizante. Nesse ambiente, o pensamento moderno levaria o processo civil a uma redução conceitual própria às ciências de medir e pesar, alimentando o dogmatismo procedimental a ponto de afastar o processo do fato que lhe dá origem e fundamento.

Talvez por isso se explique porque a utilização da razão como único meio ao indivíduo no alcance às "verdades absolutas" destemporalizou o processo civil. Tornou-o um instrumento a-histórico: um local onde atuam juizes irresponsáveis e mecanicamente programados para sobrelevar o procedimento ao custo do plano fático, relegado tradicionalmente em prol da supervalorização do rito. Essa é a compreensão metodológica em que o atual processo civil está inserido. A própria trilogia conhecimento-execução-cautelar é uma prova disso.

O interessante é que toda essa "lógica" (própria de uma forma algébrica) que está ao entorno do iter processual civil recebeu a complacência de uma atividade jurisdicional que apostou suas fichas no procedimento, dando azo, por outro lado, a uma insistência positivista capaz de alimentar as mais variadas formas de decisionismos interpretativos. Se desde então ao magistrado não lhe era dada a possibilidade de interpretar a lei, é também o rito ordinário e o processo de conhecimento, na forma como ensinado há séculos nas academias jurídicas e praticado nos tribunais forenses, fruto dessa mesma concepção. Uma concepção que destituiu a magistratura na função de promoção de políticas públicas, de satisfação dos direitos sociais-fundamentais, tornando-a por vezes um ente neutro (passivo).

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O desafio está em compreender que a processualística civil, o que se deve ao arraigamento do processo à fase tardia (período pós-clássico) do direito romano (sedimentada, posteriormente, pelo iluminismo-racionalista, como já se fez referência), tem-se apoiado numa tal "procedimentalidade" (e também "instrumentalidade"2) que acaba se revelando inautêntica ao universo hermenêutico, o que leva à inefetividade do próprio processo. Consequentemente, da Constituição.

O processo civil de que se dispõe atualmente ainda não é capaz de atender à satisfação dos direitos sociais-fundamentais constitucionalizados, até mesmo porque concentra seu foco no solitarismo judicial e em sua fixação pelo ritualismo3 fase-a-fase ordinário - compreendido como o modelo essencial do direito processual civil moderno, capaz de satisfazer na plenitude e de modo exauriente o direito material invocado em juízo (SALDANHA, 2008, p. 30) -, o que o leva a ficcionalmente crer que dessa forma trará "segurança" às partes, criando uma verdadeira aversão por todas as formas de juízos fundados em simples verossimilhança, fruto da herança cartesiana. É de se questionar: segurança a quem? Ao que? Para quando? Ao passado (que é o que se verifica), presente ou futuro?

O fato é que, atualmente, a complexidade e a contingência que se apresentam cada vez com maior intensidade na sociedade contemporânea exigem um repensar processual. Isso porque se o modelo estatal Democrático de Direito se justifica perante a missão de transformar a sociedade, não pode a jurisdição-processual civil continuar a servir como instrumento declaratório tão somente.

Tais considerações justificam a opção deste trabalho em investigar a historicidade do direito processual romano de período anterior (clássico, dos séculos II a.C. ao III d.C.) ao tardio (pós-clássico, do século IV d.C. a derrocada do Império

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romano ocidental). Em pleno século XXI, seu (do processo) redescobrimento revela-se uma necessidade. Entretanto, percorrer os mesmos caminhos da processualística moderna mostra-se um equívoco a que não se pode incorrer. Revela-se imperioso, assim, o resgate do que foi ocultado pelo tempo e por nós mesmos.

Daí o retorno ao direito romano como fonte essencial de produção processual, cujo desvelar se mostra uma possibilidade na alforria da dogmática, que com seus conceitos universalizantes pretende, através do método e da objetificação dos sentidos, antever as hipóteses aplicativas em direito, perspectiva incompatível com um Estado (brasileiro) que se proclama Democrático de Direito e com a instituição efetiva de qualquer forma de sumarização de demandas em processo civil.

1. O esquecimento do processo civil do período clássico do direito romano - a universalização da ação condenatória e a proscrição dos juízos de verossimilhança

A invasão dos povos germânicos e eslavos no século V, mesmo tendo causado a derrocada do Império do Ocidente, não foi capaz de gerar igual ocorrência no Oriente e no direito romano ali praticado, denominado direito bizantino. Ressalte-se que o Império do Oriente mantém-se no sudeste da Europa, expandindo-se rapidamente sob o comando de Justiniano, ainda no século VI d.C.

Entretanto, mesmo ante a derrocada do Império ocidental, o direito romano continuou sendo aplicado às populações de origem romana, enquanto os invasores permaneceram a viver segundo o seu direito de origem germânica, cujo reino vem a se tornar Império em 800 d.C, com Carlos Magno, o qual decai posteriormente diante do enfraquecimento de seu poder de gerência, exercido a partir de então pelos senhores locais. O próprio regime político e social torna-se feudal, sobretudo na França e Alemanha.

Dos séculos IX ao XII o direito feudal domina a Europa Ocidental, somente vindo a desaparecer definitivamente ao final dos séculos XVIII na França e XIX na Alemanha (GILISSEN, 2003, p. 127-128). O fato é que entre os séculos V e XI a prestação jurisdicional, antes concentrada no mundo romano do tardo Império,

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acaba adentrando numa fase lacunosa causada pelas invasões bárbaras (e suas origens), momento (notadamente entre os séculos V ao VII) em que Roma perderia a centralização do poder. Os primeiros esboços da Idade Média trouxeram novas manifestações jurídicas, num quadro de reinos independentes, locais em que a jurisdição clássica romana vai sendo pouco a pouco esquecida.

Tais reinos independentes foram sendo exercidos das mais variadas formas, haja vista que naquele momento haviam escapado ao controle do Príncipe. Destacam-se os centros feudais, local habitado por um Senhor que controlava a tudo e a todos, e o início da influência da Igreja (VERGER, 2001, p. 93)4 Tais fenómenos retirariam do direito a unitariedade, já que o mesmo passaria a uma condição de refém dos centros de poder. Um verdadeiro pluralismo composto de uma infinidade de ordenamentos, subtraindo tanto a ordem como um judiciário comum (VERGER, 2001, p. 92)5.

A própria Igreja -, que por séculos se utilizou das fontes do direito romano -, provocou a tentativa de instituição de uma unidade jurídica, dada mesmo a realidade do pluralismo de ordenamentos da época. Essa influência também se refletiria nos institutos processuais, porquanto a partir de então se institucionalizam os princípios da clemência e de benignidade. A jurisdição-processual, com isso, teria passado a não poder utilizar institutos que constrangessem os sucumbentes (os devedores), o que contribuiu decisivamente para a tentativa de proscrição dos juízos de verossimilhança em processo, já que o encurtamento do iter poderia vir a causar riscos demasiados aos mesmos.

E não se olvide que a época medieval refere-se a um momento em que ainda não nasceu o sujeito de identidade autónoma. Isso permitia que algumas regalias fossem sustentadas por uns (principalmente clérigos, senhores feudais e reis bárbaros) em oposição a outros, marca característica do período feudal e do direito feudal. O fato é que seu crescimento levou praticamente à supressão do

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direito romano (MERRYMAN, 2002, p. 27-28)6, que somente renasceu a partir do século XI (VERGER, 2001, p. 90-91)7, iniciando na Itália e desenvolvendo-se gradativamente na França, Alemanha, Espanha e de forma menos intensa na Inglaterra (GILISSEN, 2003, p. 130).

Em tal período, à Universidade de Bolonha (WIEACKER, 1980, p. 38-39)8 foram postos à consideração o Digesto e as Instituías (JUSTINIANO I, 2000, p. 6)9, ou seja, o conjunto do corpus iuris civilis de Justiniano, que posteriormente foi estudado ardorosamente em toda a Europa, momento em que as jurisdições de diferentes países pretenderam exigir dos juizes o conhecimento do direito romano (VILLEY, 1991, p. 84). Um direito, entretanto, que simplesmente ignorou o período anterior a Justiniano, detendo-se na renovação dos pilares que sustentavam o direito romano tardio. Isso se deve principalmente ao direito estudado nas universidades da Idade Média.

Relata Verger (1980, p. 25-26), em relação ao tema, que o despertar da atividade jurídica foi flagrante no referido período, sobretudo na França e Itália, momento em que estudiosos recorreram aos textos de direito romano em autêntico trabalho de pesquisa, de crítica e de organização das fontes do direito. Entretanto, o "foco" de estudo centrou-se nos manuscritos da codificação justiniana, não do período...

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