Terceirização na indústria do vestuário

AutorPaulo Penteado Crestana
CargoProcurador do Trabalho lotado na PTM de Pouso Alegre; Graduado em Direito pela USP e Especialista e Direito e Processo do Trabalho pelo Uniceuma
Páginas188-216

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1. Introdução

Embora as transformações sociais antecedam as mudanças no Direito, sendo mais frequentes e velozes que estas, é importante que o ordenamento

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jurídico seja dinâmico o suficiente para acompanhar a realidade social, sob pena de se tornar obsoleto e inefetivo.

Não obstante, importa registrar que a alteração normativa não pressupõe necessariamente a mudança legislativa, sendo possível, e até mesmo comum, que o sentido de uma norma seja renovado sem que o texto normativo sofra qualquer modificação, o que se dá, sobretudo, devido à circunstância de o ordenamento jurídico pátrio, assim como o de inúmeros países, estar permeado de princípios, cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados.

Tal fenômeno, que se opera por meio da interpretação jurídica, permite que as leis, e até mesmo a Constituição, acompanhem a dinâmica social com maior agilidade que haveria se fosse necessário submeter ao Poder Legislativo a conveniência e oportunidade de adaptar o texto legal a cada uma das diversas mudanças ocorridas na sociedade.

Nesta senda, é possível compreender por que, mesmo sendo praticada pela sociedade brasileira há décadas, a terceirização ainda não foi integralmente regulada pelo Poder Legislativo, que só produziu leis sobre aspectos específicos desta (já não tão) nova forma de produzir.

Com efeito, a Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, não prevê esta relação triangular entre capital e trabalho que, ao longo dos anos, se regeu, sobretudo, pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, inicialmente vedando-a, passando a admiti-la, desde que observadas algumas condições.

Ocorre que, há algum tempo, a terceirização vem sendo objeto de debate no Poder Judiciário, sendo que, mais recentemente, se intensificaram as discussões no Poder Legislativo voltadas a aprovar lei que disponha sobre o tema de forma genérica, não havendo consenso sobre os seus limites e possibilidades, havendo segmentos da sociedade que defendem a sua aplicação restrita ou mesmo a sua vedação, bem como aqueles que advogam a sua ampla possibilidade, inclusive no que diz respeito às atividades finalísticas da tomadora de serviços.

Embora o tema, de forma geral, seja amplamente abordado pela doutrina e pela jurisprudência trabalhista pátria, é certo que alguns aspectos deste fenômeno, mesmo sendo enfrentados com certa frequência pelos tribunais trabalhistas, merecem um estudo doutrinário mais aprofundado.

Neste sentido, embora seja comum a subcontratação para a produção ou costura de peças de roupas, o que muitas vezes se dá por meio contratos de facção firmados entre grandes empresas proprietárias de marcas muito conhecidas e pequenas empresas que não possuem as mínimas condições

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de honrar seus compromissos, não há suficiente discussão acadêmica acerca da legalidade de tais práticas, mesmo já havendo posicionamento jurisprudencial sobre o assunto.

Destarte, este trabalho possui como objetivo investigar as possibilidades jurídicas da terceirização na indústria do vestuário, tendo em vista que esta prática vem se reproduzindo de maneira peculiar neste ramo da economia, sobretudo pela indiscriminada utilização de contratos de facção.

Para alcançar tal desiderato, será necessária, em primeiro lugar, uma análise sobre os aspectos gerais da terceirização, a fim de contextualizar o tema de forma a possibilitar o enfrentamento adequado dos questionamentos mais específicos.

Nesta senda, em um segundo momento, será realizado um estudo sobre a relação do conceito jurídico de subordinação com a terceirização, bem como sobre a possibilidade de releitura de tal conceito e acerca das suas implicações para este modo de produzir.

Adentrando de forma mais específica no tema central e com base nos estudos realizados nos capítulos anteriores, em seguida, será realizada investigação sobre a terceirização na indústria do vestuário, o que demandará um estudo sobre o contrato de facção, havendo necessidade de caracterizá-lo e de questionar acerca de sua função social, a fim de identificar se esta relação entre empresas efetivamente configura terceirização e, caso a resposta seja positiva, se ela é ou não é lícita.

Por derradeiro, será registrado o entendimento do autor sobre o tema e serão sugeridos parâmetros para o enfrentamento da questão tanto no meio acadêmico, como na prática jurídica de advogados trabalhistas, membros do Ministério Público do Trabalho e do Poder Judiciário trabalhista.

2. Terceirização — aspectos gerais

É possível afirmar, em linhas gerais, que o Direito do Trabalho surgiu em um momento histórico quando o modo de produção mais difundido era aquele conhecido como fordismo-taylorismo1, caracterizado pela existência de grandes indústrias, com o trabalho organizado de forma altamente verticalizada e setorizada, de modo que a hierarquia existente no local de trabalho era muito acentuada.

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Assim, este ramo do Direito foi inicialmente pensado e moldado à luz desta realidade, de modo que a legislação trabalhista elaborada nesta época visava trazer estabilidade e justiça às relações sociais existentes neste modelo de produção, sendo certo que a Consolidação das Leis do Trabalho possui esta característica.

Nesta senda, Viana (2004, p. 57) esclarece que “a lógica era transformar cada trabalhador em empregado, e cada empregado em consumidor, realimentando o processo. Como disse um líder sindical italiano, o círculo era virtuoso — especialmente nos países de ponta”.

Ocorre que, prossegue Viana (2004), já no fim da década de 1960 este modo de produzir começou a apresentar sinais de esgotamento, o que sucedeu principalmente devido a onda de rebeliões de trabalhadores aliada a queda das taxas de juros, desencadeada pela defasagem entre produção e consumo, o que se agravou com as crises do petróleo de 1972/3 e 1978/9.

Neste contexto, ao tempo em que o Estado passava a questionar o outrora amplamente aceito modelo de Welfare State, adotando políticas neoliberais e antissindicais, visando reduzir o custo da mão de obra e impulsionar a economia, as empresas alteravam o seu modus operandi, abandonando parcialmente o que preceituavam Ford e Taylor, e passando a adotar um modo de produção que ficou conhecido como toyotismo.

Sobre o assunto, Viana (2004, p. 58) registra que:

Num primeiro momento, o impulso foi para automatizar radicalmente. Depois, a automatização se mostrou cara e — mais do que isso — desnecessária. O desemprego e a fragilização dos sindicatos haviam pressionado os salários para baixo, e o exército de reserva se tornava maior e mais dócil.

Assim, a fábrica passou a mesclar a automação com os novos métodos de gestão de mão de obra. Basicamente, eram variações do toyotismo, o mesmo toyotismo que os norte-americanos haviam inventado e exportado para o Japão, em plena era fordista, e que o Japão aperfeiçoara, para agora exportar.

Ao mesmo tempo, e também se aproveitando da experiência japonesa, a fábrica passou a se organizar de outro modo. De rígida, tornou-se flexível, tal como os produtos que agora fazia, o trabalhador que agora exigia e o novo direito pelo qual lutava.

Em linhas gerais, talvez se possa dizer que o sistema passou a trabalhar com a lógica inversa. Em vez de incluir, excluir — empregados, direitos,

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políticas sociais, etapas do processo produtivo. Como um vulcão que vomita lava e fogo, a fábrica passou a jogar para fora tudo o que não dizia respeito ao foco de suas atividades. Em certos casos, jogou-se ela própria para fora, descartando sua natureza de fábrica.

No mesmo sentido, Carelli (2010, p. 14-15) destaca que:

A própria organização fabril modifica-se com a denominada “reestruturação produtiva”, que altera o paradigma estrutural das empresas daquela dita “fordista-taylorista” para “pós-fordista”. Assim, as empresas não se estruturam mais verticalmente, concentrando todas as atividades em um mesmo espaço, realizadas por trabalhadores com o mesmo estatuto, e com keynesianas concepções de cidadania, porém, organizados de forma piramidal. Passam, então, a se estruturar horizontalmente, concentrando a empresa em sua atividade-fim (core business) e repassando a outras empresas suas atividades acessórias, para a ótima produção, seja em termos de qualidade, seja em termos de agilidade, melhorando sua produtividade.

Neste cenário de descentralização empresarial, Carrelli (2010) afirma que a terceirização surge como técnica administrativa adotada para que as empresas possam se concentrar em sua atividade principal, entregando as demais atividades a empresas especializadas que melhor as desempenhariam, registrando ainda que, em outros países, esta técnica é denominada subcontratação ou externalização.

Nesta linha, em busca de uma conceituação para o fenômeno da terceirização, Carrelli (2010, p. 46), cita Caio Pereira da Silva, para quem:

Terceirização, então, conforme a Ciência da Administração, deve ser entendida como “a transferência de atividades para fornecedores especializados, detentores de tecnologia própria e moderna, que tenham esta atividade terceirizada como sua atividade-fim, liberando a tomadora para concentrar seus esforços gerenciais em seu negócio principal, preservando e evoluindo em qualidade e produtividade, reduzindo custos e gerando competitividade”. Assim, é a entrega a outra empresa de atividade na qual esta é especializada, realizando esta última inteiramente a atividade de forma autônoma, com sua própria tecnologia (know-how) e equipamento. Vemos, portanto, que nada tem a ver com fornecimento de trabalhadores, ou “terceirização de mão de obra”.

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No mesmo sentido, insta registrar o conceito sugerido por Delgado (2009, p. 407), bem como algumas características da terceirização por ele apontadas:

...terceirização é o fenômeno pelo qual se...

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