A revolução dos cravos e o controlo operário

AutorRaquel Cardeira Varela - Jorge Fontes
CargoUniversidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal - Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal
Páginas327-337

Page 327

327 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p327

ESPAÇO TEMA LIVRE

A revolução dos cravos e o controlo operário

Raquel Varela1https://orcid.org/0000-0001-6121-1379

Jorge Fontes2https://orcid.org/0000-0003-3567-2731

1 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal

2 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Lisboa, Portugal

A revolução dos cravos e o controlo operário

Resumo: Neste artigo argumentamos que a característica fundamental da revolução portuguesa de 1974/75 é a luta sociológica de classes sociais travada dentro das empresas e, sobretudo, nas grandes unidades industriais. Defendemos, no âmbito de uma revisão da literatura, dever essa disputa definir-se como controlo operário, distinguindo-o quer do seu contrário – o controlo da produção, ou seja, estatalnacional – quer de formas de cogestão ou autogestão, as quais aparecem frequentemente misturadas.

Palavras-chave: Revolução dos Cravos. Controlo Operário. Autogestão.

The carnation revolution and workers’ control

Abstract: In this article we argue that the fundamental feature of the 1974/75 Portuguese revolution is the sociological struggle of social classes within companies and, above all, in large industrial units. We argue, in the context of a literature review, that this dispute should be defined as workers’ control, distinguishing it from its opposite - production control, that is, state-national control - or from forms of co-management or self-management, which often appear mixed.

Keywords: Carnation Revolution. Workers’ Control. Self-management

Recebido em 12.07.2019. Aprovado em 11.02.2019 . Revisado em 31.03.2020.

© O(s) Autor(es). 2020 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar, distribuir e reproduzir em qualquer meio, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material, desde que para fins não comerciais e que você forneça o devido crédito aos autores e a fonte, insira um link para a Licença Creative Commons e indique se mudanças foram feitas.

R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 327-337, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

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328 Raquel Varela e Jorge Fontes

Introdução

Portugal viveu a última revolução social de esquerda na Europa durante o século XX, um processo aberto pelo golpe de estado do 25 de abril de 1974 e encerrado com outro golpe, a 25 de novembro de 1975. Após meio século de revoltas fracassadas da oposição democrática, um golpe militar de capitães organizados no Movimento das Forças Armadas (MFA) descontentes com a ausência de uma solução política para a guerra colonial, obtém sucesso ao ser esmagadoramente apoiado pela população urbana da capital que sai à rua cercando o quartel onde se refugiara o ditador Marcelo Caetano.

Este artigo aborda o processo revolucionário sob um ângulo ainda negligenciado da investigação académica, o controlo operário. Com efeito, com a entrada em cena, na escala dos milhões, das massas proletarizadas, o golpe transmuta-se em revolução. A exigência de afastamento dos elementos ligados ao antigo regime transforma uma dinâmica democrática e antifascista, numa progressiva luta pelo controlo das empresas, objetivamente anticapitalista.

Espalhando-se como uma mancha de óleo, surgem organismos de tipo conselhista típicos da onda revolucionária de 1917-23, como os Comités de Fábrica na Rússia ou os Conselhos Operários de Turim: em Portugal vão em regra chamar-se Comissões de Trabalhadores (CTs) que, ao contrário dos sindicatos, reúnem todos os trabalhadores da mesma unidade económica independentemente da profissão, sendo normalmente constituídas após assembleias gerais amplamente participadas, mantendo uma ligação à base mais direta devido à sua fácil revogabilidade e inserção num processo de massas.

O objetivo deste artigo passa por demonstrar que a revolução propriamente dita, mais do que ser definida por complots militares, querelas partidárias, biografias dos grandes líderes, deve ser analisada pelo prisma do movimento “de baixo” (ZINN, 2005) deste bloco social. Ela é ditada por necessidades práticas. Será para manter os postos de trabalho ameaçados pela crise económica e frequentemente pela sabotagem económica patronal – que numa luta económica os trabalhadores ocupam as empresas, vendo-se obrigados a continuar a laboração em processos autogestionários nas unidades médias e pequenas, ou – algo mais difícil de medir por implicar uma análise qualitativa da relação de forças, a adotar formas de vigilância e controlo da atividade produtiva e do circuito comercial nas maiores unidades, mais complexas, nas quais é mais curial o peso dos engenheiros e quadros técnicos, ou seja: o controlo operário.

A nossa escolha não é arbitrária – pode-se fazer a história dos Governos a partir dos decretos e das lutas políticas entre as frações do Governo, acrescentando a descrição das lutas sociais. Pode-se fazer a história do controlo operário nas principais fábricas e empresas do País – com reminiscências em todas as centenas e milhares de empresas satélites destas (numa indústria com alto grau de monopolização) – e ver como estas mudanças vai comprometer a própria estabilidade dos seis governos provisórios.

A opção não é livre. Teoria e metodologia no labor da história não podem ser dispensadas nem por uma visão positivista que encadeia acontecimentos, nem pelo irracionalismo relativista pós-moderno que escolhe arbitrariamente os factos. Não é a crise política que dá origem ao controlo operário. É a luta nas empresas e fábricas que determina a crise política, que por sua vez vai ter impacto no controlo operário. Não há uma mera correlação, há uma relação causal. O controlo operário é assim um conceito determinante na análise e interpretação da história da revolução.

Este artigo encontra-se dividido do seguinte modo: a esta introdução segue-se uma seção que trata de fazer um estado da arte e revisão da literatura dos debates sobre o controlo operário. O item seguinte trata de analisar a sua evolução em diferentes fases, durante os nove meses da revolução. Posteriormente analisamos diferentes casos de estudo de empresas nas quais se desenrolaram processos de controlo operário. Na seção seguinte, abordamos as diferentes tentativas de unificação do controlo operário em estruturas de coordenação em nível nacional. Por fim, apresentamos breves conclusões.

Os debates sobre o controlo operário

Na literatura sobre o tema tem sido frequente a confusão entre controlo operário e autogestão, cogestão (que inclui os sindicatos) e também com situações de duplo poder organizado (sovietes). O controlo operário é um dos temas mais interessantes, mas menos estudados do período revolucionário em Portugal. É um paradoxo evidente, porque haver controlo operário faz parte da definição de um período como revolucionário.

Há poucos períodos na história onde este tema possa ser desenvolvido com a riqueza histórica da dimensão a que chegou este controlo no biénio 1974-1975 em Portugal. Casos semelhantes podem ser encontrados no biénio vermelho em Itália em 1919-20 (HARMAN, 2002) ou nas revoluções russas de 1905 e 1917 (TROTSKY, 1980), e por exemplo, mais recentemente, nos cordões industriais chilenos de 1972-1973 (WINN, 1986).

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A revolução dos cravos e o controlo operário

“Um burguês só está derrotado quando foge”, escreveu o historiador C. L. R. James na sua monumental obra Jacobinos Negros, que conta a história da revolução que deu origem ao Haiti (JAMES, 2000). Em Portugal, durante 1975, atinge-se esse momento raro na história em que setores da classe dominante literal-mente fugiram do País e outros viram-se sequestrados nas empresas que outrora administravam.

A escassez de obras sobre o tema do controlo operário bem como a migração da história da esfera económica, social e política para o âmbito político-institucional geraram uma confusão à volta do conceito de controlo operário, com poucos paralelos na historiografia social. É difícil encontrar um autor que use o mesmo nome para coisas idênticas. Pelo reverso, usa-se sobre coisas distintas, indiscriminadamente, o conceito de controlo operário. Ele é sobretudo confundido com autogestão, mas também, no caso da revolução portuguesa, com cogestão, intervenção do Estado nas empresas, ocupação de fábricas e empresas, processos reivindicativos de cariz sindical, democracia industrial e mesmo com a própria gestão do Estado.

O controlo operário é um processo de dualidade de poderes que consiste na organização política dos trabalhadores ao nível da produção – formalizada ou não – com tendência (objetiva) à tomada do poder político. É uma situação no processo de luta no meio de um processo revolucionário e não uma estrutura ou instituição. Haver controlo operário é parte da definição do próprio conceito de um período como sendo revolucionário. Este fenómeno específico distingue-se da autogestão (forma em que os trabalhadores passam a ser patrões de si próprios) e da cogestão (os trabalhadores estão, normalmente através dos sindicatos, a gerir a empresas e/ou fábricas em parceria com os patrões e/ou com o Estado).

É comum ver também em algumas obras a associação entre controlo operário e situações de duplo poder organizadas, não reconhecendo estes autores a existência de controlo operário por não existirem formas de organização conselhistas estruturadas (sovietes). Cremos que esta visão é equivocada porque em determinadas situações o controlo operário pode ser mais forte que a dualidade de poderes a nível político, ou seja, a disrupção na produção no setor económico pode ser muito...

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