Revista do Ministério Público do Trabalho n. 20 (setembro/ 2000) - Discriminação, preconceito e consciência

AutorMaurício Correia de Mello
CargoProcurador-Chefe Substituto da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região
Páginas254-259

Page 254

Monteiro Lobato, denunciando o racismo pós-abolição, escreveu o conto “Negrinha”, publicado em 1920. O conto é sobre uma menina de sete anos, que nascera na senzala, e que após a morte da mãe, foi criada na casa de uma mulher rica. A menina não tinha nome, só apelidos: “pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo e até bubônica, a peste que estava na moda”. Mas pararam de chamá-la assim quando perceberam que ela achava o nome bonito. Todo dia a patroa batia na menina: “Ai como alivia a gente uma boa roda de crochê bem incado!”.

Quando Negrinha repetiu o nome que lhe chamaram a vida toda, “peste”, a patroa aplicou-lhe um corretivo. Mandou-a abrir a boca e eniou-lhe

Page 255

um ovo bem quente: “Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?” E a mulher ainda foi se queixar com o vigário: “Ah monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, ilha da Cesária, mas que trabalheira me dá!” Um dia foram para a casa da mulher duas sobrinhas, lindas meninas louras.

Negrinha nunca tinha visto uma boneca, ainda mais uma que falava “mamã”. Ficou espantada. As meninas riram da admiração, mas a deixaram pegar na boneca. Todos viram tal expressão de felicidade na cara da menina, uma felicidade tão intensa, que até a patroa amoleceu e permitiu que Negrinha fosse brincar no pátio, com as meninas, pela primeira vez na sua vida.

Prossegue Lobato: “Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, ainal, como fulgurante lor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi — e essa consciência a matou. Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ritmo habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não atanazava tanto e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza ininita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu, trevas a dentro do seu doloroso inferno, envenenara-a. (...) Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas e de anjos, redemoinhando numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

(...) Foi-se apagando, o vermelho da goela, desmaiou... E tudo se esvaiu em...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT