Revista do Ministério Público do Trabalho n. 15 (março/1998) - O devido processo legal e a tutela dos interesses metaindividuais

AutorSandra Lia Simón
CargoProcuradora Regional do Trabalho na 2ª Região
Páginas207-226

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objeto a análise da tutela dos interesses metaindividuais em relação à cláusula do due process of law e, para tanto, o tema será desenvolvido em três tópicos. No primeiro, analisar- -se-á o devido processo legal propriamente dito, dando-se destaque para a sua previsão no direito positivo brasileiro. No segundo, será abordada a tutela dos interesses metaindividuais, associando-se o aparecimento das

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macrolesões com a evolução das liberdades públicas e constatando-se a insuiciência da legislação processual tradicional. Analisar-se-ão, ainda, as soluções encontradas no direito comparado para a problemática em estudo, destacando-se a legislação brasileira regulamentadora da matéria. No terceiro tópico, será enfrentado um problema especíico, relacionado com a tutela dos interesses metaindividuais, no que diz respeito à formação do polo passivo em ação civil pública, na qual se pretenda a declaração de nulidade de contratações de trabalhadores, pela Administração Pública, efetuada ao arrepio do art. 37, inciso II, da Constituição Federal. E, inalmente, na conclusão, será delineado um panorama geral, com a retomada das considerações expedidas no decorrer do presente trabalho. Verificar-se-á a efetividade da legislação brasileira que possibilita a tutela jurisdicional dos interesses metaindividuais, destacando-se o papel desempenhado nos dias de hoje pelo Estado, bem como a tendência da jurisprudência.

2. O princípio do devido processo legal: garantia constitucional fundamental do processo

Constitucionalistas e processualistas modernos consideram que todos os princípios que informam o processo civil derivam do devido processo legal. Assim, bastaria a garantia expressa deste para que os demais princípios também estivessem assegurados. Trata-se, portanto, de gênero, sendo os outros, espécies136. O devido processo legal pode ser assim deinido137: “... conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que coniguram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimamente do exercício da jurisdição”.

No Brasil, o due process of law é considerado apenas no seu aspecto processual138 e modernamente se caracteriza como “o direito ao procedimento adequado: não só deve o procedimento ser conduzido sob

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o pálio do contraditório (...), como também há de ser aderente à realidade social e consentâneo com a relação de direito material controvertida”139.

Assim, no ordenamento jurídico brasileiro são expressão do devido processo legal o contraditório e a ampla defesa, a igualdade processual, a publicidade, o dever de motivar as decisões judiciais, a obtenção de provas apenas por meios lícitos, o direito à citação e ao conhecimento da acusação etc. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 especifica, de maneira expressa e direta, no art. 5º, inciso LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O constituinte deu a esta regra o status de direito e garantia fundamental, ao incluí-la no Título II, da Lei Maior brasileira. Por outro lado, em se tratando de direito e garantia fundamental, integra o núcleo imodificável da Lei Fundamental, cláusula pétrea, por conta do que se verifica do seu art. 60, § 4º, inciso IV. É, assim, possível concluir, preliminarmente, que o due process of law é a possibilidade efetiva que os cidadãos têm de ter acesso ao Estado-juiz, para que este decida um conlito de interesses, dando-se-lhes oportunidades para que possam deduzir a sua pretensão em juízo, com todas as formas de defesa, o mais amplamente possível. A simples garantia do devido processo legal asseguraria todos os demais princípios informadores do processo140. O fato do constituinte brasileiro haver elencado, de forma expressa, no mesmo art. 5º, vários outros princípios, representa uma preocupação excessiva, justificada pelo momento em que foi promulgada a Carta Magna, ou seja, depois do regime militar totalitário, período em que as garantias e direitos individuais eram constantemente desrespeitados.

3. A proteção dos interesses metaindividuais

a. O aparecimento das macrolesões

A partir de 1975, os processualistas modernos, notadamente na Itália, começaram a se preocupar com um tipo de lesão que, até então, não possuía destaque no mundo jurídico: as chamadas lesões de massa, próprias

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da moderna sociedade pós-industrial, oriundas das complexas relações econômicas, sociais e políticas. Mauro Cappelletti141 foi dos primeiros juristas a constatar a mudança nas relações jurídicas contemporâneas, que passaram do meramente individual para o social e/ou coletivo: “Não é necessário ser sociólogo de proissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conlitos e de conlitualidades de massa (em matéria de trabalho, de relações entre classes sociais, entre raças, entre religiões etc.). Daí deriva que também as situações de vida, que o Direito deve regular, são tornadas sempre mais complexas, enquanto, por sua vez, a tutela jurisdicional — a Justiça — será invocada não mais somente contra violações de caráter individual, mas sempre mais frequente contra violações de caráter essencialmente coletivo, enquanto envolvem grupos, classes e coletividades. Trata-se, em outras palavras, de ‘violações de massa’.

Na realidade, a complexidade da sociedade moderna, com intrincado desenvolvimento das relações econômicas, dá lugar a situações nas quais determinadas atividades podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir problemas desconhecidos às lides meramente individuais”. Existem, portanto, atos lesivos da tamanha repercussão, que podem adentrar na esfera jurídica de um número muito grande de pessoas, atingindo seus interesses e direitos. Se tais pessoas possuem um vínculo jurídico básico, uma espécie de affectio societatis, a doutrina denominou seus respectivos interesses de coletivos; se entre elas inexiste qualquer tipo de vinculação, mas há apenas uma identidade de situações de fato, trata-se de interesses difusos142. Existem, ainda, interesses decorrentes de origem comum, denominados interesses individuais homogêneos. Assim, interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos são espécie do gênero interesse metaindividuais ou transindividuais. As violações de massa, típicas das sociedades modernas, provocam conlitos de massa, afetando concomitantemente várias pessoas e, por vezes, categorias ou grupos inteiros (todos os habitantes de uma região, todos os consumidores de determinados produtos, todos os que compartilham de determinadas condições socioeconômicas, todos os que se submetem a um mesmo empreendimento, todos os empregados de uma fábrica, toda uma categoria proissional etc.). Passou a ser necessário, então,

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um tipo de tutela diferenciado, objetivando o respeito à cláusula do devido processo legal143: “a solução macroscópica de tais conlitos, por intermédio de processos em que a lide seja resolvida, de uma vez por todas, com relação a todos os titulares dos interesses em conlito, significa a acolhida de novas formas de participação, pela ação de corpos intermediários”. Nesse mesmo sentido se posiciona a doutrina estrangeira, conforme se verifica das lições do eminente constitucionalista português, José Joaquim Comes Canotilho144: “O direito a um procedimento justo implicará hoje a existência de procedimentos colectivos (Massenverfahren na terminologia alemã), possibilitadores da intervenção colectiva dos cidadãos na defesa de direitos econômicos, sociais e culturais de grande relevância para a existência colectiva (exemplo: ‘procedimentos de massas’, para a defesa do ambiente, da saúde, do patrimônio cultural, dos consumidores)”. Antes do estudo dos tipos de tutela jurisdicional destes interesses metaindividuais, é importante salientar que essa modificação nos tipos de conlitos, que acarretou uma “revolução” no direito processual, está intrinsecamente relacionada com a evolução das liberdades públicas, conforme ver-se-á a seguir.

b. A evolução das liberdades públicas

A expressão liberdades públicas foi questionada por não traduzir exatamente o que representa. Afinal, se são públicas estariam em contraposição às liberdades privadas. Entretanto, as outras expressões que poderiam ser utilizadas tampouco dão o alcance necessário: direitos do homem excluiria os direitos econômicos e sociais; direitos fundamentais têm noção demasiadamente relativa, pois variam no tempo. Assim, a doutrina chegou ao consenso de que a expressão liberdades públicas, além de ser a menos restritiva, tem respaldo histórico. Não cabe, portanto, a diferenciação entre liberdades públicas, próprias das relações dos homens com os órgãos estatais, e liberdades privadas, típicas das relações entre os particulares. Conforme ensinaram os Professores Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Ada Pellegrini Grinover e Anna Cândida da Cunha Ferraz145: “Todas as liberdades são públicas, porque a obrigação de respeitá-las é imposta pelo Estado e pressupõe sua intervenção. O que torna uma liberdade pública (qualquer que seja o seu objeto) é a intervenção do Poder através da consagração do direito positivo: assegura, protege, regulamenta. Liberdades Públicas: poderes

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