Revista do Ministério Público do Trabalho n. 11 (março/1996) - Ação civil pública para a tutela de interesses difusos na Justiça do Trabalho

AutorAdriana Maria de Freitas Tapety
CargoProcuradora do INSS
Páginas123-160

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1) Introdução: a coletivização do direito

Oriunda do Direito Romano, a clássica divisão do Direito Positivo em Público e Privado ocorreu numa época em que existiam somente dois polos referenciais distintos, isto é, o Estado e o indivíduo. A “consciência do coletivo” só foi adquirida com o evoluir dos tempos, quando os indivíduos passaram a compreender que eles, isoladamente, aniquilavam-se em suas fraquezas, mas reunidos em grupos com anseios em comum, ganhavam

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peso e, consequentemente, capacidade de inluir nas decisões. Durante muito tempo, os Estados, então emergentes, lutaram contra o crescimento destes “interesses coletivos”, concretizados na forma de grupos de indivíduos unidos por um “vínculo comum”, com medo de que eles se fortalecessem em demasia e, então, fracionassem a estrutura estatal.

As primeiras manifestações de “interesses coletivos” foram os movimentos operários constituídos pela união de trabalhadores para a defesa mais eicaz de seus interesses, estruturando-se sob a forma de organizações sindicais. As origens do sindicalismo são encontradas na Inglaterra, no período logo após a Revolução Industrial. Os primeiros sindicatos eram constituídos de pequenos grupos locais, cujo objetivo era assegurar a vigência de leis trabalhistas. Entretanto, o Estado se opunha ao movimento sindical, proibindo as associações e reuniões, ideia que vinha da França, da Lei “Le Chapelier”.

Assim, o sindicalismo emergente, pela “Lei contra a Conjuntura”, em 1799 e 1800, foi considerado movimento criminoso. Os seus sócios sujeitavam-se a penas criminais. A resistência do Estado ao exercício de tais interesses coletivos transformou o sindicalismo, a princípio, em um movimento clandestino e marginal. Assim, apenas em nossa história recente foi totalmente reconhecida a liberdade de associação mas sempre sob os olhos atentos do Estado30.

Deste modo, passou a ser reconhecida a denominada “nova ordem coletiva”, que permitiu a defesa coletiva dos interesses pertencentes ao “indivíduo socialmente vinculado”, ao grupo de indivíduos que possuíam entre si um vínculo jurídico básico, uma geral affectio societatis, nas palavras precisas de Celso Bastos31, e não apenas uma simples adição de interesses individuais (individuais homogêneos). Foi, então, a partir do momento em que as fronteiras entre o interesse público (objetivado pelo Estado) e o privado (individual) foram se tornando luidas, que entre elas foram ganhando espaço os hoje denominados “interesses metaindividuais”. A evolução dos interesses, entretanto, não foi linear, como pode parecer, mas cíclica, alternando momentos históricos de prevalência do “coletivo” e do “individual”. Segundo Camargo Mancuso, ocorreu uma “escala crescente de coletivização em cuja base estão os interesses individuais”32.

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Deste modo, o interesse coletivo surge no momento em que os interesses individuais se agrupam, não para uma melhor defesa deles próprios, mas, “libertos de sua carga de egoísmo” se unem para formarem interesses novos, interesses que extrapolam a órbita do indivíduo e passam a pertencer ao grupo, que então irá representá-los e defendê-los.

Ocorre que, nesta “escalada crescente de coletivização”, numa etapa subsequente, alguns destes “interesses coletivos” que eram setoriais, ultrapassam o campo de atuação do grupo (sindicato, associação, ordens), e passam à órbita do interesse geral, indistinto quanto aos contornos e quanto à titularidade. Mancuso nos dá o exemplo do interesse ao pleno emprego, que ultrapassa a esfera de atuação dos sindicatos; e o interesse à proteção da natureza como um todo, que vai além da órbita das associações de proteção à ecologia.

  1. Panorama dos Instrumentos de Defesa Coletiva de Interesses no Direito Comparado: As leis brasileiras que criaram a ação civil pública (Lei
    n. 7.347/85) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), como não poderia deixar de ser, foram buscar em modelos legislativos estrangeiros mais evoluídos, inspiração para delinear a defesa dos interesses coletivos e difusos, procurando adequá-la à realidade de nosso país. Como exemplos de legislações estrangeiras, dotadas de modernos instrumentos de defesa coletiva de interesses metaindividuais, podemos citar33:

    1. Inglaterra — onde existe a chamada relator action ou representative action, que constitui uma ação ajuizada, mediante prévia autorização do Procurador-Geral de Justiça (Attorney General), objetivando sentença declaratória da obrigação de indenização pelo agente causador do dano aos atingidos pela lesão; b) Estados Unidos — onde é comum o ajuizamento das denominadas class actions por associações organizadas ou grupos informais, com o objetivo de obterem indenização, por um dano uniformemente causado ou homogeneamente sofrido, indenização esta que deverá ser revertida para um fundo (luid recovery fund), de onde poderá ser distribuída aos que se habilitem como interessados; c) França — que possui a action d’intérêt publique, que é ajuizada por associações mediante prévia autorização do Ministério Público, e tem por objetivo imposição de obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa; d) Alemanha —

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    onde a chamada Adhasionprozess também pode ser ajuizada por associações civis com o único intuito de se impor obrigação de fazer ou não fazer. Ao inal desta exposição, poderemos observar que os nossos mecanismos de defesa coletiva dos interesses plurissubjetivos são muito mais abrangentes quanto à tutela objetivada, quer quanto à legitimação, quer quanto aos efeitos do provimento jurisdicional postulado.

  2. Surgimento da Ação Civil Pública no Direito Brasileiro e sua Evolução: O embrião da Lei n. 7.347/85, que criou a ação civil pública, foi o anteprojeto elaborado por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, submetido em 1983 ao I Congresso Nacional de Direito Processual, em Porto Alegre, e depois apresentado à Câmara dos Deputados pelo deputado Flávio Bierrenbach, quando tomou o Projeto n. 3.034/84. Entretanto, não foi o Projeto n.
    3.034/84 que se converteu na Lei n. 7.347/85.

    Em dezembro de 1983, o Ministério Público de São Paulo se reuniu no XI Seminário Jurídico de Grupos de Estudos, para apreciar a tese “Ação Civil Pública”, de autoria dos promotores de justiça Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Júnior. Por ocasião deste seminário, discutiu-se o mencionado projeto Bierrenbach, que, modificado pelo Ministério Público paulista, foi apresentado como um novo anteprojeto ao então Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel. Assim, muito embora já estivesse em tramitação o Projeto n. 3.034/84, o Poder Executivo adotou a versão criada pelo Parquet paulista, encaminhando um novo projeto, que recebeu o n. 4.984/85 na Câmara e o n. 20/85 no Senado. Ao inal, foi o projeto do Executivo que, tramitando mais celeremente, acabou sendo aprovado pelo Congresso34. Do projeto do Executivo (aprovado na Câmara e no Senado) constava, no inciso IV do art. 1º, norma de extensão pela qual também encontrariam proteção nesta lei “outros interesses difusos e coletivos”. Tal norma de extensão, porém, foi vetada pelo então Presidente da República José Sarney, sob a alegação de que surgiria insegurança jurídica diante de expressão tão ampla e que ainda não estava sedimentada na doutrina.

    Apesar do lastimável veto presidencial, que apenas privou a doutrina e a jurisprudência de sedimentar os conceitos referentes à proteção dos direitos difusos desde então, a Lei, mesmo da maneira como foi sancionada, representou um grande avanço na defesa da coletividade. O sucesso da

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    ação civil pública gerou pressões da sociedade, no sentido de ampliar a proteção jurisdicional a todos os interesses coletivos e difusos. Assim, por ocasião da feitura da Constituição Federal de 1988, o veto presidencial ao inciso IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85 já tinha perdido grande parte de sua substância, devido ao disposto no art. 129, III, da Nova Carta, que conferia ao Ministério Público a norma residual de atuação em favor de “outros interesses difusos e coletivos”, e não apenas os especificados em lei. Em alguns diplomas legislativos posteriores à Constituição (como na Lei
    n. 7.913/89, que dispôs sobre ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado imobiliário; na Lei n. 7.853/89 que dispôs sobre ação civil pública em defesa das pessoas portadoras de deiciência, ou na Lei n. 8.069/90, que dispôs sobre a proteção judicial dos interesses difusos e coletivos da criança e do adolescente), foi estendida a proteção jurisdicional a novos interesses coletivos e difusos. Por im, foi editada a Lei n. 8.078/90, que, por meio do seu art. 110, modificou a redação do art. 1º da Lei n. 7.347/85, para abandonar, deinitivamente, o princípio das hipóteses taxativas para a propositura da ação civil pública, ressuscitando o vetado inciso IV, que permitia genericamente a defesa de “outros interesses difusos e coletivos” não elencados especificamente nos incisos anteriores.

  3. Direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e difusos, características: O Código do Consumidor (Lei n. 8.078/90), em seu art. 81, parágrafo único, contém, expressamente, as deinições de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, com o objetivo de dirimir a confusão, até então reinante, entre os direitos difusos e os demais direitos plurissubjetivos. “Art. 81 — A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único — A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I — interesses ou...

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