Revista do Ministério Público do Trabalho n. 9 (março/1995) - O direito e a função do Ministério Público

AutorAtahualpa Fernandez Neto
CargoProcurador do Trabalho em exercício na PRT
Páginas88-97

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O tema pressupõe dúvida — sobre o papel do jurista no nosso tempo — e o que se propõe é oferecer, com uma abordagem geral, senão uma “certeza”, ao menos breves linhas que convirjam numa convicção possível. O objetivo, portanto, é menos descritivo do que perspectivo. Não se trata de descrever o que aí está — ou ainda está —, mas do que está por vir, do que vislumbramos esboçar-se no horizonte nunciador do futuro, e que nem por essa razão é menos do nosso tempo, pois se são coordenadas da nossa vivência atual a possibilidade do futuro, só a assumida intencionalidade antecipante dá sentido e direção ao nosso caminhar.

Regra geral, ao tratar-se do tema, é comum analisá-lo tendo em conta três questões, dirigidas tanto ao Direito como ao Jurista: pela

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primeira, pergunta-se diretamente pelo fundamento, pela validade do Direito, enquanto tal; em outra, interroga-se sobre a função humano-social do jurídico e, inalmente, na última das questões põe-nos perante o seu problema metodológico. Assim, pois, o jurista terá um papel a desempenhar e desempenhá-lo-á bem, se o Direito for uma intenção válida que ele assuma na sua verdadeira e indispensável função humano-social, para o realizar em termos metodologicamente adequados.

Todavia, a limitação imposta pela natureza deste artigo, força-nos a restringir o campo de análise apenas à segunda das questões: aquela que nos leva a reletir sobre o papel a ser desempenhado pelo jurista em vista da função humano-social do jurídico. Sendo a nossa uma perspectiva de historicidade, e considerando que no tempo presente uma época humana se consuma e outra se anuncia, deixaremos de dispor daquele sempre invocado tipo de jurista em que ele se manifesta como o racionalizador do social mediante esquemas transacionais impostos à ação, os quais (esquemas) quando não cedem à tentação do dogmatismo puramente sistemático e formalizante, constroem um demi monde descomprometido com as opções sobre os últimos ins da ordem estabelecida e quem do real, aquele intermédio mundo jurídico sustentado no ponto de equilíbrio, ou pela conciliação tentada, entre a ordem e a liberdade, a estabilidade e a transformação, a “certeza” e a “justiça”.

De fato, pressupor esse tipo e perguntar através dele que papel terá o jurista no nosso tempo, aigura-se-nos como algo que não é lícito hoje fazer-se, pois seria isso culturalmente inválido e humanamente inútil, senão mesmo condenável — e isto qualquer que seja o mérito ou o demérito daquele tipo como estrutura redutiva dos juristas oferecidos pela história até os nossos dias. Mas ainda porque aceitando a eternidade de um tipo de jurista (e a correlativa concepção do Direito), cuja viabilidade (e até validade) é hoje duvidosa, prepararíamos a tentação da renúncia desesperada — “contra o impossível não há que lutar” — ou do isolamento orgulhoso das dicotomias inumanas e do abismo.

De outra forma, não se olvida que no próprio seio do Direito, nas suas intenções e no método de seu pensamento, repercutem já, e fortemente as ondas revoltas deste nosso mundo existencial, posto que é a sua também iniludível situação de crise. E nem haveria de ser diferente, pois o Direito não poderia decerto icar imune na complexa crise moral e cultural que é a nossa circunstância. Há, pois, que inserir aí mesmo, no próprio momento da mutação e da crise, o problema do Direito, na tentativa de encontrar para ele a solução à altura do nosso tempo, sem excluir uma possível e necessária conversão do jurista, nas suas intenções e nos seus métodos. Ainal, “o ter

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sido não se mostra como garantia de continuar a ser; é possível algo de novo, ainda que só a novidade da ausência” (CASTANHEIRA NEVES).

Depois, não será esta revisão da concepção do jurídico e das suas intencionalidades metodológicas algo de inteiramente novo e sem procedentes; antes na História Romano-Europeia do Direito são já discrimináveis três dessas profundas revisões. O que o jurista romano — referimo-nos só ao jurista clássico, o jurista cidadão revestido de uma auctoritas pessoal, a quem socialmente se reconhecia jus respondendi — via no Direito e como o realizava não se confunde com o sentido jurídico e a metodologia do jurista medieval — o jurista do “direito comum”, um universitário, um acadêmico que exibe uma qualificação, e que ao método empírico-indutivo dos romanos, dirigidos por uma social invocação da aequitas e da ides, opõe um método racional-dedutivo louvado numa sapiência doutoral de leges, rationes, auctorias e communis opinio doctorum.

De igual modo, ao jurista medieval se recusa à identificação com o jurista da Idade Moderna, muito embora do direito como pressuposto, como “dado” e conteúdo lógico, naturalmente se tenha inferido aquele outro postulado metodológico fundamental, que haveria de decidir da concepção do jurídico até o nosso tempo: o direito passa a ser concebido — observou-o Ehrlich — como uma norma, uma regra geral (uma premissa) que fundamenta a dedução lógico-jurídica.

De fato, pouco há o que se dizer para recordarmos o que trouxe de “novo” à concepção do direito e a seus métodos o jurista moderno, isto porque, no atual esquema abstrato e processual, o jurista, “na grande maioria dos casos, é instado a receber as soluções do chamado direito positivo, sem nenhuma contribuição critica ou criadora” (COMPARATO). Como pondera Clémerson Merlin Cléve, ao jurista já não cabe verificar a razoabilidade da norma estatal, mas sim aplicar a regra, ainda que ilegítima, inadequada, ultrapassada ou arbitrária. Em síntese, ao invés de mediador da...

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