Revisitando um classico da interlocucao do Servico Social com a tradicao marxista: Entrevista com Marilda Villela lamamoto sobre os 33 anos do livro Relacoes Sociais e Servico Social no Brasil Esboco de uma interpretacao historico-metodologica.

AutorCardoso, Isabel Cristina da Costa
  1. O livro Relacoes sociais e Servico Social no Brasil e o produto do seu trabalho em conjunto com Raul de Carvalho, vinculado ao projeto de Investigacao do Centro Latinoamericano de Trabajo Social (Celats), que estabelece uma analise do Servico Social como profissao no Brasil, no contexto historico da sociedade capitalista entre 1930 e 1960. Poderia recapitular o periodo de sua insercao no Celats?

    Nas decadas de 1970 e 1980, a presenca do Brasil foi decisiva na renovacao critica do Servico Social latino-americano, no lastro do "movimento de reconceituacao" (1). Verifica-se, entao, uma ampla articulacao profissional no continente buscando um Servico Social enraizado na America Latina, sob a lideranca da Associacion Latinoamericana de Trabajo Social (Alaets) e de seu organismo academico, o Centro Latinoamericano de Trabajo Social (Celats). Eles desempenharam um papel exemplar na elaboracao de um pensamento critico no Servico Social na America Latina vinculado aos interesses das maiorias, quando a pos-graduacao e a pesquisa academica davam seus primeiros passos nessa area. Contribuiram para o fortalecimento da organizacao academico-profissional no marco continental, assim como na construcao da fraternidade dos povos latino-americanos no embate com as ditaduras militares e o imperialismo.

    Esse movimento politico-cultural de renovacao profissional ocorre no contexto da Guerra Fria, em um ciclo expansionista do capital que permite entender, inclusive, a presenca do financiamento alemao por meio da Fundacao Konrad Adenauer (FKA), no ambito do Servico Social no continente. Ela e indissociavel da disputa pela hegemonia na America Latina por parte dos paises "centrais". Um ciclo com tonalidade depressiva demarca o cenario mundial nos anos 1980, a que se alia a crise do Leste Europeu e a vitoria do imperio norte-americano contra as forcas democraticas, alimentando a expansao neoliberal.

    Em 1974, a partir de um convenio de cooperacao tecnico-financeiro entre a Alaets e a FKA, intermediado pelo Instituto de Solidariedad Internacional (ISI) da Democracia Crista Alema, e criado o Celats. A entidade tem seus estatutos aprovados em 1975, em El Salvador, estabelecendo sua sede em Lima (Peru). Em 1976 foi reconhecida pelo governo peruano como organismo de cooperacao tecnica internacional.

    Em 1978, eu ingresso no Celats como pesquisadora adjunta, a convite de Leila Lima Santos, entao diretora da entidade. A proposta era de participar da elaboracao e realizacao de um projeto de pesquisa sobre a historia do Servico Social na America Latina, sob a coordenacao de Manuel Manrique Castro. Este projeto foi assumido como atividade principal da area de investigacoes do Celats para os anos de 1978 a 1979. O texto original desse projeto foi publicado na Revista do Celats no. 5, sob o titulo Hacia el estudio de la historia del trabajo social en America Latina (CELATS, 1979, p. 53-73).

    A revisao do acervo bibliografico recolhido a epoca mostrava ser a literatura sobre a historia do Servico Social presidida ou por uma abordagem meramente descritiva da trajetoria da profissao--a historia reduzida a uma sequencia evolutiva de acontecimentos -, ou por uma visao paralelista entre a historia da profissao e a da sociedade, em que esta era tomada como mero "pano de fundo" para uma analise da "historia interna" do Servico Social. Verificou-se, ainda, um acentuado "latinoamericanismo" na leitura da historia do Servico Social em nivel continental, traduzido na desconsideracao das diferencas historicas dos paises e gerando uma perspectiva generalista, com forte perda do potencial explicativo das especificidades nacionais.

    Recusando tais caminhos, nosso projeto pautou-se numa abordagem organica das relacoes entre historia da sociedade e da profissao, situada nas peculiares relacoes historicas entre Estado e sociedade civil nos paises considerados: Brasil e Peru. Elegemos as relacoes entre as classes sociais e suas fracoes em suas relacoes com bloco do poder como o fulcro explicativo das demandas e da necessidade de institucionalizacao e desenvolvimento da profissao, considerando as particularidades nacionais. Como abordagem teorico-metodologica, buscamos inspiracao na tradicao marxista a partir de seus fundadores e de fontes originais. Era explicita, ainda, por parte dos pesquisadores, a intencao de romper os dilemas da primeira aproximacao a essa tradicao intelectual no Servico Social latino-americano presidida por um "marxismo sem Marx", resultando numa "etica de esquerda e uma epistemologia de direita", tal qual denunciara Lukacs (1963) em outra ocasiao.

    A pesquisa documental sobre a historia do Servico Social no Brasil foi por mim coordenada. Contou com a decisiva participacao do economista e historiador Raul de Carvalho, que vem de uma familia de doces e bravos lutadores. Sua mae, Renee, e oficial da resistencia francesa, e seu pai, Apolonio de Carvalho, um dos mais exemplares militantes da esquerda brasileira no marco das lutas internacionais socialistas, e certamente o seu mais terno figurante. Em 1935, ainda tenente, Apolonio de Carvalho lutou contra a ditadura de Vargas. Foi preso e expulso do exercito. Em 1938, participou da Guerra Civil Espanhola, do lado da Republica e contra o fascismo franquista. Em 1942, tornou-se membro da resistencia francesa, resistindo a invasao nazista. Na decada de 1960, combateu a ditadura, tendo sido preso, torturado e trocado pelo embaixador alemao junto com trinta e nove presos politicos, passando a viver dois anos na Argelia e dois na Franca. Assinada a anistia, voltou ao Brasil e participou da fundacao do Partido dos Trabalhadores. Recuperou sua patente de general do exercito e faleceu em 2005.

    Sabemos que a articulacao do Servico Social na America Latina, soldando uma unidade de diversidades nacionais, remonta ao ano de 1965, quando ocorre, em Porto Alegre, no Brasil, o I Seminario de Servico Social face as mudancas sociais na America Latina. Este foi o primeiro marco publico da busca por um Servico Social latino-americano, reagindo a importacao de parametros profissionais. Denuncia-se, assim, o capitalismo dependente e o imperialismo norte-americano, num ambiente politico-cultural marcado pela vitoria dos revolucionarios de Sierra Maestra sobre Havana, das lutas estudantis de 1968, da abertura da Igreja Catolica a partir do Concilio Ecumenico do Papa Joao XXII e da teologia da libertacao. Este primeiro Seminario desdobrou-se em seis outros subsequentes, que assentam as bases para uma estruturacao mais organica do Servico Social no continente: em Montevideu (1966), no Uruguai, em Concepcion (1969), no Chile, em Cochabamba (1970), na Bolivia e, novamente, em Porto Alegre (1972), no Brasil.

    A Alaets data de 1965 e foi criada no marco do V Congresso PanAmericano de Servico Social da Organizacao dos Estados Americanos (OEA). No entanto, sua primeira refundacao politica ocorreu em Quito, no Equador, em 1971, sob a presidencia do companheiro chileno Luis Araneda (gestao de 1971-1974) e movida pela busca de sua independencia do Servico Social norte-americano e da OEA, redirecionada aos dilemas latinoamericanos e a construcao de um Servico Social enraizado no continente.

    A programacao do Celats-Alaets, nas decadas de 1970 e 1980, contemplava basicamente tres grandes areas: a) investigacao, voltada ao conhecimento dos setores populares: camponeses, operarios, populacionais e indigenas; ao papel das politicas sociais publicas, em especial saude e habitacao; ao conhecimento da realidade institucional na qual opera o Servico Social, suas associacoes profissionais e seu perfil profissional; e a historia do Servico Social na America Latina; b) capacitacao continuada, permitindo uma reflexao sobre a atuacao dos profissionais por meio de seminarios, cursos a distancia, alem da organizacao da primeira pos-graduacao em Servico Social em nivel continental, consubstanciada a Maestria Latinoamericana en Trabajo Social (MLATS), em convenio com a Universidad Autonoma de Honduras, sediada em Tegucigalpa; c) comunicacao, com a publicacao da serie Livros-Celats, a Revista Accion Critica e os Cuadernos Celats. Dentro desta programacao, a minha insercao no Celats foi prioritariamente na area de investigacao, na assessoria a projetos de capacitacao continuada e outros eventos, tendo colaborado ainda no Mlats, minha primeira experiencia na pos-graduacao stricto sensu.

    Do conjunto de acoes academicas e organizativas desenvolvidas pela entidade no periodo considerado, creio merecer destaque as seguintes atividades, por suas repercussoes no Servico Social brasileiro:

    1. A pesquisa sobre a organizacao do Servico Social na America Latina, desenvolvida pelo Celats, em 1977, sob a responsabilidade de Roberto Rodriguez e Walter Tesch (2). As organizacoes sindicais e profissionais do Servico Social viviam crises permanentes na concretizacao cotidiana de seu papel, uma clara debilidade associativa e uma minima participacao de seus membros. Remonta dai a necessidade de estabelecer contato com as associacoes e organizacoes nacionais, tendo em vista sua revitalizacao e fortalecimento, cabendo ao Celats a obtencao de fontes de financiamento para viabilizar este processo organizativo.

      O Brasil dispunha, a epoca, de aproximadamente 16 mil assistentes sociais, dos quais cerca de 7 mil inscritos do Conselho Federal de Assistentes Sociais e respectivos Conselhos Regionais (CFAS-CRAS), criados em 1962 e distribuidos em 10 regionais. Hoje, somos cerca de 150 mil profissionais registrados no Conselho. Havia tambem 14 associacoes profissionais e 5 sindicatos localizados no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza, que formavam a organizacao gremial da categoria profissional. Depois de Argentina e Mexico, o Brasil ocupava o terceiro lugar em numero de cursos de Servico Social, todos de nivel superior, um diferencial ante aos demais paises latino-americanos. A Associacao Brasileira de Ensino em Servico Social (Abess) congregava 37...

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