O estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade

AutorProf. Ingo Wolfgang Sarlet
CargoDoutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Juiz de Direito no RS. Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e na Faculdade de Direito da PUC/RS, onde também leciona no Mestrado em Direito.
Páginas1-22

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1 - Considerações introdutórias: a crise do Estado social de Direito e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social

Hoje, mais do que nunca, constata-se que a problemática da sobrevivência do assim denominado Estado social de Direito constitui um dos temas centrais da nossa época. A já corriqueira afirmativa de que o "Welfare State" ou Estado-Providência se encontra gravemente enfermo1, além de constantemente submetido à prova, não perdeu, portanto, sua atualidade. Que as discussões de longe já não se restringem mais à esfera da análise política, sócio-econômica e jurídica, mas se transformaram na preocupação de larga parcela da humanidade pela manutenção de seu padrão de vida e até mesmo pela sua sobrevivência, verifica-se não apenas a partir da especial atenção dedicada ao tema nos meios de comunicação, mas pelo fato de que cada ser humano, em maior ou menor grau, acaba sendo atingido pela crise. Cada elevação de tributos, cada redução nos níveis prestacionais do Estado e cada perda de um emprego e local de trabalho acaba por influenciar diretamente o cotidiano da vida humana, de tal sorte que se pode partir da premissa de que a crise do Estado Social é, ao mesmo tempo, uma crise de toda a sociedade. Page 2

Oportunamente denominado de filho da moderna sociedade industrial, o Estado social de Direito não poderá jamais permanecer imune às suas transformações e desenvolvimento.2 Limitando-nos, por exemplo, a uma das manifestações da atuação do Estado Social e analisando a problemática dos sistemas de segurança social, verifica-se que é particularmente nesta esfera que o dilema representado pela simultânea necessidade de proteção e, por outro lado, de uma constante adequação dos níveis de segurança social vigentes à realidade sócio-econômica se manifesta com particular agudeza. Se, por um lado, a necessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser desconsiderada, simultaneamente o clamor elementar da humanidade por segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas do Estado.3

De outra parte, a crescente insegurança no âmbito da seguridade social decorre, neste contexto, de uma demanda cada vez maior por prestações sociais e de um paralelo decréscimo da capacidade prestacional do Estado e da sociedade.4 O quadro delineado remete-nos, por outro lado, ao angustiante questionamento de o quanto as conquistas sociais podem e devem ser preservadas. Em que pese o entendimento dominante de que uma supressão pura e simples dos sistemas de seguridade social, sem qualquer tipo de compensação, não é, em princípio, admissível e sequer tem sido seriamente defendida, a problemática relativa à proteção constitucional das posições sociais existentes permanece no centro das atenções.5 Em outras palavras, cuida-se de investigar se, como e em que medida os sistemas prestacionais existentes, concretizadores do princípio fundamental do Estado Social, podem ser assegurados contra uma supressão e/ou restrições.

Neste particular, é preciso ressaltar que, de acordo com a doutrina majoritária, uma proibição absoluta de retrocesso social tem sido excluída de plano, mormente em face da dinâmica do processo social e da indispensável flexibilidade das normas vigentes, de modo especial, com vistas à manutenção da capacidade de reação às mudanças na esfera social e econômica.6 Por outro lado, constata-se que a Lei Fundamental da Alemanha (no que não se encontra isolada no âmbito europeu) não contém nenhum preceito que direta e expressamente ofereça qualquer tipo de proteção ao nível constitucional do sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes, advogando- Page 3 se, além disso, o entendimento de que tal garantia não pode ser direta e exclusivamente deduzida do princípio geral (fundamental) do Estado social de Direito (arts. 20, inc. I e 28, inc. I, da LF) ou mesmo das diversas normas de competência.7 Mesmo assim, no âmbito de uma proibição relativa de retrocesso, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas com o problema, lograram desenvolver, a partir do direito constitucional positivo, algumas alternativas destinadas a ensejar um certo grau de proteção às prestações sociais e ao sistema global de seguridade social. Particular relevância assumiu, neste contexto, o direito e garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF), razão pela qual esta será priorizada neste breve estudo sobre a proibição de retrocesso social na Alemanha. As demais alternativas referidas na doutrina serão, por ora, objeto de mera apresentação, tanto pelas limitações deste artigo, quanto pelo fato de que não lograram atingir a mesma importância.

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita da função da garantia da propriedade para a proteção do sistema de seguridade social na Alemanha, convém lembrar o leitor de que, ao mesmo tempo em que a discussão em torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do Estado social de Direito apresenta proporções mundiais, não há como desconsiderar que as dimensões da crise e as respostas reclamadas em cada Estado individualmente considerado são inexoravelmente diversas, ainda que se possam constatar pontos comuns. Diferenciadas são, por outro lado, as soluções encontradas por cada ordem jurídica para enfrentar o problema, diferenças que não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que abrangem, de modo especial, a intensidade da proteção outorgada por estes aos sistemas de seguridade social.

O estudo do modelo germânico, no âmbito do direito comparado, assume particular interesse por várias razões, destacando-se o fato de que a Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, mas também da social-democracia (com Lassale), bem como da própria noção de um Estado social e democrático de Direito, bastando aqui a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo social deste século. Por outro lado, pela posição de destaque que a Alemanha (juntamente com a França e a Itália, por exemplo) ocupa na União Européia, o estudo do exemplo germânico, além de expressar de modo geral e paradigmático - ressalvadas as especifidades de cada país - a realidade do Estado social de Direito na Europa ocidental, serve como importante fonte de referência para uma análise comparativa.

Além disso, a peculiaridade das soluções desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência alemã (independentemente de sua eficácia e de suas vantagens) merece alguma atenção não apenas pelas alternativas oferecidas, mas também pelo uso de certas categorias que, salvo melhor juízo, poderiam gerar certo interesse prático também entre nós, notadamente no que diz com a figura da expectativa de direitos, a proteção da confiança e o uso do princípio da proporcionalidade. Ademais, assume relevo o uso alternativo do direito e garantia fundamental da propriedade, sinalizando de forma paradigmática as Page 4 diversas funções que podem ser deduzidas dos direitos fundamentais e das transformações que estes sofreram ao longo dos tempos. Assim, ainda que venhamos a concluir pela desnecessidade ou inconveniência desta solução no âmbito do direito pátrio, de modo especial em face dos mecanismos consagrados em nossa Constituição, temos a convicção de que o presente estudo não se restringe a um mero capricho pessoal, já que - salvo melhor juízo - o desmantelamento do Estado social de Direito também entre nós se encontra na ordem do dia.

Por derradeiro, ainda no que diz com a apresentação do tema e as limitações deste estudo, cumpre ressaltar que a nossa atenção estará centrada na apresentação e breve análise do modelo germânico, de modo especial, na dimensão constitucional, isto é, jurídico-positiva, do problema da proibição de retrocesso social. Estamos cientes, todavia, de que estaremos nos ocupando apenas de um dos inúmeros aspectos da problemática global das possibilidades e limites do Estado de Direito, isto sem falar na relevância filosófica, sócio-econômica e política do tema.

II - A garantia fundamental da propriedade e a proteção constitucional de posições jurídicas sociais prestacionais

Consoante já referido, a principal solução desenvolvida na Alemanha para fundamentação de uma proteção para o sistema de prestações sociais e das respectivas posições jurídico-subjetivas encontra-se vinculada ao direito e garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF). A problemática da estabilidade e flexibilidade das posições jurídicas no âmbito da seguridade social acabou, por esta via, alcançando uma dimensão genuinamente constitucional.8 Ainda que este tema continue sendo controverso, o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha ("Bundesverfassungsgericht"), após uma fase inicial caracterizada por uma certa retração9, acabou por reconhecer em diversas decisões que a garantia da propriedade alcança também a proteção de posições jurídico-subjetivas de natureza pública, de tal sorte que, atualmente, se pode falar da formação de um determinado grau de consenso nesta esfera.10

Como ponto de partida para este desenvolvimento, costuma referir-se a doutrina de Martin Wolff, que, relativamente ao art. 153 da Constituição de Weimar, advogava o ponto de vista de que o conceito de propriedade abrange toda sorte de direitos subjetivos privados de natureza...

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