Restriçáo á concurrencia, autorizaçáo legal e seus limites. - Lei 8.884, de 1994 e Lei 6.729, de 1979 ('Lei ferrari')

AutorEros Roberto Grau e Paula A. Forgjoni
Páginas258-272

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Consulta

O contrato de concessáo celebrado entre um fabricante de veículos automotores terrestres e seus distribuidores determina que estes desenvolveráo suas atividades com exclusividade, nao podendo comercializar veículos fabricados por outras montadoras.

Alguns dos distribuidores confronta-ram-se com a recusa de seu fabricante em admitir que o mesmo empresario, em sociedades comerciáis distintas, venha a exercer concessáo comercial de veículos de marcas diversas, sem que para tal atitude oferega qualquer outra justificativa que nao a recusa arbitraria.

Indaga-se da licitude da conduta do fabricante, considerando-se, em especial, a legislagáo brasileira de defesa da livre con-corréncia e repressáo ao abuso do poder económico.

Parecer
I - Introduçáo
  1. A Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, também conhecida como "Lei Anti-truste", dispóe sobre materias relacionadas as infragóes contra a ordem económica, disciplinando o comportamento dos agentes económicos no mercado tendo em vista a protegáo da livre concorréncia e a repressáo ao abuso do poder económico.

    A legislacjlo antitruste, tal como hoje concebida, nasce com a promulgagáo do Sherman Act, em 1890, pelo congresso norte-americano. Além disso, a proficua aplicagáo, pelas Cortes dos Estados Unidos, tanto desse texto quanto da legislado subseqüente, fez com que as leis e as deci-sóes judiciais norte-americanas fossem, desde sempre, tomadas como paradigmas para aplicaclo de leis similares surgidas posteriormente em outros países.

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    Mesmo a legislagao européia de disciplina da concorréncia nao pode ignorar o regramento norte-americano, ainda que te-nha buscado um caminho diverso, no per-correr do qual a concorréncia nao é vista como um fim em si mesma, mas como um instrumento de que se deve langar máo para atingir os objetivos maiores da Uniáo Européia.

    Por isso é que hoje, ao lado da legis-lagáo e da praxis norte-americana, a vivencia européia na área da disciplina da concorréncia constituí referencial que nao pode ser ignorado, principalmente em países com urna estrutura industrial altamente concentrada, como é o caso brasileiro.

  2. No Brasil, muito embora o Decre-to-lei n. 869, de 1938, já contivesse algu-mas disposigóes típicamente antitruste, apenas recentemente comega a delinear-se um ensaio de "cultura da concorréncia" entre os agentes económicos. O Estado nao encetara, até atualmente - nem se podía identificar com clareza - qualquer "política da concorréncia".

    Criado em 1962, com a promulgagáo da Lei n. 4.137, o CADE-Conselho Administrativo de Defesa Económica1 vinha de-sempenhando, até o inicio da década de 90, papel pouco expressivo entre nos. Provocada contudo pela "abertura do mercado brasileiro" patrocinada pelos governos Collor e Cardoso e pelo reaquecimento da concorréncia entre os agentes económicos, a autoridade antitruste passou a atuar de modo incisivo, ocupando as manchetes dos jomáis e despertando a atengáo dos empresarios. A legislagáo que trata da materia en-contra, destarte, condigóes de efetividade.

  3. Nem o CADE, nem as pessoas que se arrogavam a condigáo de especialistas na materia dispunham, até entáo, de urna "jurisprudencia" administrativa ou judicial consolidada. Em outras palavras, sentia-se a falta de "pautas de interpretado" que pu-dessem servir de referencial a aplicagáo da legislagáo que disciplina a concorréncia.

    Havia, sim, algumas decisóes antigás e desconectadas entre si, mas que nao se prestavam a funcionar como paradigmas a inspirarem a atuagáo decisoria do órgáo.

    Assim, era natural que se fosse buscar ñas fontes americanas o material argumentativo que poderia balizar as teses dos ad-vogados e juristas que iniciavam a militán-cia nessa área, bem assim a atuagáo do pró-prio CADE. De outra parte, também a prá-tica européia passou a ser considerada, aínda que de forma secundaria.

    A referencia a julgados e autores es-trangeiros, entáo, tornou-se a mais come-zinha das práticas. Os relatónos dos Con-selheiros do CADE passaram a fundamen-tar-se, por exemplo, ñas ligoes de Suüivan e Hovenkamp,2 ao mesmo tempo que o co-nhecido HHI (Herindhal-Hirschman índex)3 sem que a lei brasileira lhe faga qualquer mengáo, passa a ser adotado como índice apto a mensurar o grau de concentra-gáo em determinados mercados.

  4. É certo no entanto que, embora o recurso á doutrina e á jurisprudencia es-trangeiras possa consubstanciar fonte de subsidios útil, nem urna nem outra podem ser tomadas como absolutas. Vale dizer: elas nao podem ser transplantadas para a realidade brasileira sem que sejam consideradas as particularidades do nosso mercado e do nosso sistema jurídico. A indiscriminada transposigáo de teorías e para-

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    digmas pode mostrar-se inadequada e mes-mo perigosa, colocando em risco a efetivi-dade e a eficacia4 da legislagáo brasileira e nos conduzindo por caminhos incompatí-veis com o direito brasileiro.

    Insista-se em que o direito é um nivel funcional do todo social; assim, ele será, sempre, fruto de urna determinada cultura. Por isso nao pode ser concebido como um fenómeno universal e atemporal e, v.g., embora se possa referir um direito do modo de producjio capitalista, em cada socieda-de manifesta-se um determinado direito, diverso e distinto dos outros direitos, que se manifestam em outras sociedades.5

    Importa repetirmos, também, que em cada sistema jurídico subjaz, latente, um sistema de principios, diverso daqueles próprios a outros sistemas. O intérprete [auténtico ou nao], nao pode deixar de considerar, ao tomar cada texto normativo, as singularidades do ordenamento jurídico do qual o texto participa, considerando-as, ademáis, no momento histórico vivencia-do. Devem ser relidas, com atengáo, todas as sabias advertencias lanzadas por Tullio Ascarelli.6

  5. Em síntese, a doutrina e a jurisprudencia estrangeiras podem e devem ser utilizadas pelo intérprete - o que, de resto, será feito no desenvolvimento deste parecer. Cumpre porém repudiarmos a mera transposiçao de institutos e teorías, de um para outro direito.

    Interpretar o direito é concretar a lei em cada caso, ou seja, é aplicar7 a lei; o intérprete, ao interpretar a lei, desde um caso concreto, a aplica. Daí dizermos que interpretaqáo e aplicaqáo nao se realizam autónomamente. O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado.8 Assim, existe urna equagáo entre interpretaqáo e aplicaqáo: nao estamos, aquí, diante de dois momentos distintos, porém frente a urna só operacio.9 Interpretaqáo e aplicaqáo se superpóem.

    Ora, sendo, a interpretaqáo, concomi-tantemente aplicaqáo do direito, deve ser entendida como produqáo prática do direito, precisamente como a toma Friedrich Müller,10 para quem inexiste tensáo entre direito e realidade; nao existe um terreno composto de elementos normativos, de um lado, e de elementos reais ou empíricos, do outro. Por isso a articulado ser e dever-ser (a relacjío norma-fató) é mais do que urna questáo da filosofía do direito, é urna ques-tao da estrutura da norma jurídica tomada na sua transposiqáo prática e, por conseqüén-cia, ao mesmo tempo urna questáo da estrutura deste processo de transposiçáo.

    Isso significa que a norma é produzi-da, pelo intérprete, nao apenas a partir de elementos que se despreendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser).11 O que incisivamente deve aqui ser afirmado, a partir da metáfora de Kelsen,12 é o fato de a moldu-

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    ra da norma ser, diversamente, moldura do texto, mas nao apenas dele; ela é, conco-mitantemente, moldura do texto e moldura do caso. O intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produgáo prática do direito.

    E certo, a doutrina e a jurisprudencia estrangeiras podem ser úteis ao intérprete do direito brasileiro. Mas elas nao podem, sob qualquer pretexto, ser superpostas aos elementos do caso - isto é, aos elementos da realidade [mundo do ser] - ao qual a norma será aplicada.

    Em linguagem simpática aos especialistas do antitruste, deve-se proceder a urna análise pelo case by case approach, toman-do-se em conta o mercado e o sistema jurídico brasileiro, como um todo.

    Nao será demasiada a repetigao, por fim, de que a interpretagáo do direito nao pode ser feita em tiras, aos pedamos. Nao se interpreta, portanto, o texto de lei, mas o direito, langando-se máo de um processo her-menéutico que considera o ordenamento jurídico como um todo e, conseqüentemente, o sistema de principios que lhe é subjacen-te. Nao se pode interpretar isoladamente a Lei n. 8.884, de 1994, apartando-a das or-dens económica e jurídica brasileiras.

II - A tutela da livre concorréncia no sistema jurídico brasileiro e as infraçóes á ordem económica
  1. A Constituigáo do Brasil é muito clara ao definir a livre concorréncia como um meio, um instrumento voltado ao alcance de um bem maior, o de "assegurar a todos existencia digna, conforme os ditames da Justina social".13

    Deveras, dispóe o seu art. 170:

    "A ordem económica, fundada na va-lorizagáo do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existencia digna, conforme os ditames da justiga social, observados os seguintes principios:

    "IV - livre concorréncia; %..)" (grifamos).

    De outra parte, determina o § 412 do art. 173:

    "A lei reprimirá o abuso do poder económico que vise a dominagáo dos mercados, a eliminagao da concorréncia e ao aumento arbitrario de lucros".

    1. Buscando a concregáo desses pre-ceitos constitucionais, a Lei n. 8.884/94 "dispóe sobre a prevengáo e a...

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