A restrição da rescisão contratual do trabalhador vítima de acidente de trabalho e/ou doença ocupacional a partir de um novo viés interpretativo do art. 7o, inciso I, da Constituição Federal (diálogo das fontes)

AutorRosita de Nazaré Sidrim Nassar - Francisco Milton Araújo Júnior
CargoProfessora da Universidade Federal do Pará ? UFPa - Juiz Federal do Trabalho ? Titular da 5a Vara do Trabalho de Macapá/AP
Páginas127-140

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"Se você pensa que tudo o que faz é certo, lembre que o SENHOR julga as suas intenções. Faça o que é direito e justo, pois isso agrada mais a Deus do que lhe oferecer sacrifícios."

(Provérbios, Capítulo 21, v. 2-3)

1. Considerações iniciais

As dolorosas notícias de ocorrência de acidentes1 no ambiente de trabalho encontram-se cada vez mais presentes na sociedade contemporânea e al igem todas as nações do globo.

Notícias como soterramento de 89 (oitenta e nove) mineiros no dia 30 de março de 2013, na China2, ou da morte do alemão Moritz Erhardt no dia 15 de agosto de 2013, estagiário de 21 anos do Bank of America-Merril Lynch, em Londres, que, de acordo com o jornal britânico "h e Independent", estava praticamente sem dormir há três dias conectado nas atividades proi ssionais3, ou mesmo a morte de Marcleudo de Melo Ferreira, de 22 anos, natural de Limoeiro do Norte, no Ceará, no dia 14 de dezembro de 2013, que caiu de uma altura de 35 (trinta e cinco) metros quando trabalhava na montagem da cobertura do estádio que sediou a Copa do Mundo, em Manaus4, integram o cotidiano da mídia nacional e internacional, demonstrando a realidade nefasta das precárias condições de labor a que são submetidos os trabalhadores.

O trabalho, como meio de materialização de conquistas pessoais, tem se tornado motivo de dor, sofrimento e desestruturação familiar, seja por provocar sequelas de ordem física e/ou psicológica no trabalhador, seja por propiciar a ocorrência do próprio óbito do trabalhador.

Nessa dramática realidade, al ora a busca de mecanismos para tornar o habitat laboral mais hígido, seguro e saudável, como forma de assegurar a concretude da garantia constitucional da dignidade humana.

Em reação à legítima busca da gestão humanizada do empreendimento econômico, vozes pragmáticas representando o capital estabelecem o contraponto a partir do discurso de que o acidente do trabalho é fruto do acaso ou do descuido do próprio trabalhador, e que a solução deve ser pelo viés da reparação pecuniária da vítima.

Nessa perspectiva, pode-se destacar a entrevista do secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, à BBC de Londres, na qual é categórico em ai rmar que a "preguiça" dos trabalhadores é a causa dos acidentes de trabalho ocorridos na Arena construída em Manaus.

Nas palavras do próprio Miguel Capobiango: "Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa ... infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento."5

Ainda que, por delimitação temática, não se aprofunde na análise das causas dos acidentes de trabalho, cabe destacar que o prognóstico limitado da ocorrência do acidente de trabalho como decorrente de ato isolado do trabalhador encontra-se suplantado pela compreensão da multiplicidade de elementos desencadeadores de acidentes a que se encontra exposto o trabalhador6.

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Sobre a perspectiva da solução reducionista da reparação pecuniária do acidente de trabalho, Tom Dwyer explicita a ótica do capital ao comentar que "na área da indenização, a vida humana, os braços e as pernas são reduzidos a quantias calculadas que têm como referência as tabelas legalmente padronizadas ou deter-minadas pelo segurador. Cálculos atuariais induzem muitos empregadores a considerar os acidentes e sua indenização como parte normal do negócio"7.

Observa-se que a frieza do capital em reconhecer as consequências do acidente de trabalho como mero componente que integra os custos do empreendimento econômico deve ser suplantada pela busca de instrumentos jurídicos adequados que assegurem a efetividade dos princípios estruturantes da ordem econômica no Brasil, em especial da otimização da valorização do trabalho humano e função social da propriedade, conforme estabelece o art. 170, da Constituição Federal.

Dessa forma, objetivando prevenir a ocorrência de acidentes de trabalho, deve-se priorizar a implementação dos mecanismos de segurança no trabalho pelo empreendimento econômico, mecanismos estes que perpassam pelas fases de antecipação, identificação, avaliação e controle dos riscos ocupacionais8.

Em caso da ocorrência do acidente de trabalho que resulte em limitação da capacidade laborativa, deve-se buscar a implementação de garantias constitucionais que possam assegurar ao obreiro o direito ao "primado do trabalho", estabelecido no art. 193, da Constituição Federal.

Concentrando-se nesse último aspecto, Elisabete Cestari comenta que o trabalhador acidentado com limitação da capacidade laborativa sofre dupla exclusão, ou seja, "a primeira é econômica, uma vez que o indivíduo perde a sua condição de trabalhador produtivo e ganha a denominação de ‘segunda classe’. E a segunda é a social, pois o trabalhador deixa de ser um sujeito autônomo, torna-se inválido, dependente e vítima de preconceitos"9.

O trabalho, como ai rmação social do cidadão perante o próprio indivíduo, a sua família e a comunidade em geral, passa também a agregar sentimentos de inutilidade e desprezo para os trabalhadores acidentados com limitação na capacidade laborativa em face da frágil manutenção do trabalho, haja vista que a análise isolada das normas jurídicas e, por conseguinte, desarraigadas da principiologia constitucional, apenas reconhece a garantia de emprego para esses trabalhadores por 12 (doze) meses (art. 118, da Lei n. 8.213/91), de modo que, depois desse período de estabilidade acidentária, teoricamente a empresa poderia livremente rescindir o contrato de trabalho.

Registra-se que o art. 93, da Lei n. 8.213/91, reconhece a esse trabalhador acidentado, quando enquadrado como reabilitado ou pessoa portadora de dei ciência, garantia de emprego nas empresas com mais de 100 (cem), desde que inserido no percentual de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) do número de empregados.

Findada a estabilidade acidentária de 12 (doze) meses e não sendo o trabalhador benei ciário da garantia de emprego fixada pelo art. 93, da Lei n. 8.213/91, seja porque a empresa possui menos de 100 (cem), seja porque o trabalhador não se enquadra como reabilitado ou pessoa portadora de dei ciência, seja porque a empresa contratou outro trabalhador

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reabilitado ou portador de dei ciência para integrar a cota legal do mencionado dispositivo legal, teoricamente, repitimos, com base na análise isolada das normas jurídicas e, por conseguinte, desarraigada da principiologia constitucional, poderá a empresa livremente rescindir o contrato de trabalho.

A realidade do "descarte" do trabalhador acidentado pela empresa é algo comum e, de acordo com Helcio Davi de Freitas, ocorre mediante uma ação sincronizada do órgão previdenciário e do empregador, haja vista que o INSS "apressa o retorno do trabalhador às suas atividades laborais, muitas vezes sem que haja uma recuperação total, e o empregador, percebendo a fragilidade do trabalhador, o despede logo ao final do período de estabilidade, a fim de ‘evitar maiores complicações’, ou até mesmo antes, coni ando na desinformação do empregado"10.

Nesse ponto, a partir da compreensão da fragilização do pacto laboral dos trabalhadores acidentados com limitação na capacidade laborativa e da necessidade do resgate da garantia constitucional de que "a ordem social tem como base o primado do trabalho" (art. 193, da Constituição Federal), propõem-se no presente artigo a construção de uma base interpretativa constitucional consubstanciada na Teoria do Diálogo das Fontes que possibilite i xar parâmetros que restrinjam a rescisão contratual dos trabalhadores com sequelas acidentárias.

2. Acidentado de trabalho: dimensões da "chaga social"

Os dados da Organização Internacional do

Trabalho (OIT) demonstram que cerca de 2,34 milhões de acidentes de trabalho com vítimas fatais ocorrem por ano em todo o mundo, o que equivale a uma média diária de 5.500 mortes e representa um gasto de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial ou cerca de 2,8 trilhões de dólares11.

A análise das repercussões do acidente de trabalho na sociedade brasileira pode ser iniciada a partir dos dados estatísticos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) que demonstram que o Brasil i gura entre os recordistas mundiais em acidentes laborais, estando na quarta colocação mundial em número de acidentes fatais de trabalho, com média de uma morte a cada 3,5 horas de jornada de trabalho e com gastos de cerca de R$14 bilhões por ano com acidentes de trabalho12.

Cabe destacar que as estatísticas do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) não rel etem a quantidade real de acidentes e das doenças laborais ocorridas no país, haja vista que apenas consideram as comunicações regulares ao órgão previdenciário que afetaram trabalhadores com Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) devidamente anotada, de modo que, de acordo com Caio Zinet13, em razão das subnotificações, os dados oi ciais de acidente de trabalho tendem a ser 30% (trinta por cento) inferiores ao real quantitativo de acidentes.

Analisando propriamente os dados do Ministério da Previdência e Assistência Social, verifica-se que no ano de 200614 foram concedidos 2.454.719 (dois milhões, quatrocentos e cinquenta e quatro mil e setecentos e dezenove)

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benefícios previdenciários e no ano de 201215 foram concedidos 4.957.681 (quatro milhões, novecentos e cinquenta e sete mil e seiscentos e oitenta e um), o que corresponde a um aumento de 99,81% em 06 (seis) anos.

As estatísticas do Ministério da Previdência e Assistência Social de 2006 a 2012 demons-tram que as ocorrências dos acidentes laborais continuam crescendo no país, com...

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