Restorative justice--problems and perspectives/ Justica restaurativa--problemas e perspectivas.

AutorSecco, Marcio

Segundo dados divulgados pelo Sistema de Informacao Penitenciaria--INFOPEN, em 2016, a populacao carceraria no Brasil era de 726.712 presos. Comparado aos numeros de 2014, quando o Brasil apresentava um total de 622.202 presos, houve um significativo aumento de 104.510 pessoas encarceradas no pais. Se ampliarmos a margem ate 2002, quando o Brasil apresentava um total de 239.345 presos condenados e provisorios, a tragedia parece ainda maior. Os numeros revelam ainda que 74% dos presos tem ate 34 anos, e 55% tem ate 29 anos. 80% dos presos no Brasil nao concluiram o Ensino medio, e 0% possui ensino superior completo. Entre os crimes praticados que levaram ao encarceramento, 70% sao crimes de trafico ou patrimoniais, entre os homens. Entre as mulheres, 60% sao acusadas ou condenadas por trafico. Outro dado que chama a atencao e que o Brasil oferece apenas 350.000 vagas em presidios, ou seja, menos da metade necessaria para dar conta do contingente de presos.

O aumento do numero de pessoas presas poderia significar a diminuicao no numero de crimes praticados, demonstrando assim que o encarceramento e uma boa resposta para o problema da violencia no Brasil. Ocorre que, segundo levantamento realizado pelo IPEA, o numero de homicidios, por exemplo, aumentou significativamente na ultima decada. Se entre 2005 e 2007 o numero de homicidios ficou entre 48.000 e 50.000 por ano, em 2015 atingiu a marca de 59.080 casos registrados. O presidio, longe de ser um lugar de ressocializacao funciona como uma verdadeira escola do crime. O sistema penitenciario brasileiro vive as voltas com crises causadas por faccoes criminosas nascidas nos proprios presidios. O encarceramento nao resolve o problema da seguranca publica, nao recupera os presos, e ainda funciona como um fomentador da criminalidade.

O paradigma a partir do qual o encarceramento se apresenta como a melhor solucao em termos de punicao definitivamente nao atingiu seus objetivos--o de responsabilizar e ressocializar infratores, acarretando assim, uma crise de legitimidade do Sistema de Justica, bem como, o estabelecimento de violencia generalizada e o crescimento exponencial dos indices de encarceramento. Sica (2007) ressalta que instaurou-se na realidade atual o "esgotamento do modelo repressivo de gestao crime".

A fim de solucionar os problemas decorrentes da ineficacia do sistema de justica criminal, inumeras tentativas foram implementadas no decorrer no processo historico, sendo a mais recente, a adocao de medidas alternativas ao encarceramento, especificamente o monitoramento eletronico. Todavia, como vimos acima, nunca se prendeu tanto no Brasil. Os numeros so aumentam, o que indica que o estabelecimento de penas alternativas nao causou grandes impactos no sistema criminal.

De acordo com ZHER (2008), a problematica acima decorre dos pressupostos sobre crime e justica que amparam o sistema de justica criminal, os quais encontram-se alheios a experiencia do crime e se desenvolvem da seguinte forma:

  1. Atuacao na perspectiva de atribuir a culpa;

  2. Visa ao estabelecimento de punicao;

  3. A justica e mensurada pelo processo e nao pelos resultados alcancados;

  4. Desconsidera as necessidades dos envolvidos diretamente na lide, especialmente as vitimas.

Uma das saidas apontadas para a diminuicao do encarceramento e a implementacao de formas alternativas de justica. A partir de 1970, paises como Estados Unidos e Canada adotaram formas diferenciadas para o tratamento do crime, como a Justica Restaurativa.

O Brasil, segundo levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justica em 2016, identificou a institucionalizacao de praticas restaurativas em 17 estados, sendo estes: Acre, Amapa, Para, Roraima, Tocantins, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Goias, Mato Grosso do Sul, Espirito Santo, Minas Gerais, Sao Paulo, Rio Grande do Sul e Parana. Tais praticas sao desenvolvidas nas areas de justica juvenil, juizado especial criminal, familia e violencia domestica contra a mulher. Mas no que exatamente consiste a Justica Restaurativa e quais suas diferencas em relacao a forma tradicional de se compreender o crime e a punicao.

A Concepcao De Crime na Justica Restaurativa

Howard Zehr, um dos fundadores e principais defensores da Justica Restaurativa aponta um conjunto de diferencas entre duas formas de ver o crime, a retributiva e a restaurativa. Em um quadro comparativo organizado de maneira bastante didatica o autor apresenta o que, em sua concepcao, sao as principais diferencas entre as duas formas. Segundo Zehr (2008, p.174), sob uma perspectiva retributiva, os aspectos que formam a ideia de crime sao os seguintes: 1. O crime e definido pela violacao da Lei; 2. Os danos sao definidos em abstrato; 3. O crime esta numa categoria distinta dos outros danos; 4. O Estado e a vitima; 5. O Estado e o Ofensor sao as partes no processo; 6. As necessidades e os direitos das vitimas sao ignorados; 7. As dimensoes interpessoais sao irrelevantes; 8. A natureza conflituosa do crime e velada; 9. O dano causado ao ofensor e periferico; 10. A ofensa e definida em termos tecnicos e juridicos.

No modelo de justica retributiva quem comete um crime age contra uma ordem estabelecida e regulada por um conjunto de normas abstratas que se impoem a todos. Neste sentido, a primeira vitima de qualquer crime e sempre e antes de tudo, o Estado. O Estado moderno, alias, tem como um de seus principais motivos de nascimento a criacao desta ordem juridica na qual todos os comportamentos possam ser definidos como criminosos ou permitidos. Entre as principais teorias que fundamentam o surgimento e o poder do Estado moderno, marcadamente as teorias contratualistas do seculo XVII (Hobbes (1) e Locke (2)), a funcao de fazer leis e aplica-las e considerada exclusividade do Estado. Tal exclusividade e sempre apontada como necessaria para que se consiga cessar os conflitos que ameacam a propria instituicao da sociedade. O Estado assume, nestas teorias, o papel de terceiro imparcial. Alem do mais, o Estado possui a tarefa de oferecer leis que possam estabelecer: 1. Uma definicao do que e crime, separando tais condutas daquelas consideradas normais e aceitaveis; 2. Uma punicao adequada as violacoes; 3. Uma nocao de liberdade individual que se constroi como o conjunto de acoes nao proibidas pelas leis. Ao Estado cabe ainda o papel de fazer cumprir as sentencas.

Em um panorama como este, quando um crime e cometido, a centralidade da relacao estabelecida pelo Estado e com o criminoso. E a relacao do Estado com o criminoso e baseada em um recorte da existencia do individuo, de tal maneira que se consiga ter como unico foco o ato delituoso, desprezando contextos formadores e fatos determinantes que constituem a historia de vida do individuo que cometeu o crime. O que se busca julgar, portanto, e uma acao especifica delimitada no tempo e no espaco que se encaixe em um dos casos previstos na legislacao como proibidos. A vitima cujos direitos foram violados, apesar de ser quem sofreu a violencia, nao tem qualquer papel na conducao do processo que resultara na condenacao. A propria reparacao devida esta delimitada por uma metrica que nem sempre e compreendida pela vitima. Dada a sentenca, o ofensor deve cumprir sua pena como um tipo de expiacao, o que, de certa maneira, leva o criminoso a uma condicao de sofrimento e inferioridade parecida aquela sentida por sua vitima.

A ideia de justica tem como uma de suas principais caracteristicas o equilibrio entre as partes. O equilibrio na relacao entre vitima e ofensor, pela nocao de justica tradicional, se da pelo cumprimento da pena. O apenado se percebe como alguem que "pagou sua pena" tao logo termina seus anos de encarceramento ou se submete a outro tipo de punicao. Neste sistema, aquele que cometeu algum crime nao se ve obrigado a...

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