A justiça restaurativa: uma abrangente forma de tratamento de conflitos

AutorAdriana Goulart de Sena Orsini - Caio Augusto Souza Lara
Ocupação do AutorProfessora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG, Coordenadora do Projeto Estruturante do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG - Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Vice-presidente da Federação Nacional dos Pós-graduandos em Direito (FEPODI)
Páginas337-346

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1. Reflexões introdutórias

Na contemporaneidade, são basicamente três os modos de resolução de conflitos interindividuais e sociais, a saber: a autotutela, que é o método que se realiza quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse, impondo-o (e impondo-se) à parte contestante e à própria comunidade que o cerca; a autocomposição, quando há despojamento unilateral em favor de outrem da vantagem por este almejada, quer pela aceitação ou resignação de uma das partes ao interesse da outra, quer pela concessão recíproca por elas efetuada, sendo o conflito solucionado pelas partes, sem a intervenção de outros agentes no processo de pacificação da controvérsia; e, a heterocomposição, quando o conflito é solucionado mediante a intervenção de um agente exterior à relação conflituosa original (SENA, 2010).

São modalidades de heterocomposição a jurisdição, arbitragem, mediação, conciliação e, também, a Justiça Restaurativa. O tema escolhido para ser abordado no presente trabalho é a Justiça Restaurativa que, inclusive, pode ser classificada como um método alternativo e complementar de tratamento de conflitos.

Hodiernamente, os meios alternativos de resolução de conflitos alçaram a condição de instrumentos de fortalecimento e melhoria da distribuição de justiça, uma vez que viabilizam acesso à justiça, como também complementam o papel do sistema jurisdicional. Autores nos advertem que, por representarem um efetivo ganho qualitativo na solução e administração de conflitos, os programas e sistemas alternativos ao Judicial devem ser objeto de criterioso monitoramento e acurada avaliação, a fim de que as boas práticas sejam fomentadas e difundidas (SLAKMON, 2005).

Todavia, é de se ressaltar dois importantes aspectos: a utilização dos meios alternativos no Brasil ainda é pequena e a litigiosidade judicial ainda é expressiva. Em relatório do Conselho Nacional de Justiça foi destacado que se encontravam pendentes, ao fim de 2010, 55,7 milhões de processos, o que corresponde a um aumento de 2% em relação ao ano anterior.

Diante deste quadro, é imprescindível pensar formas alternativas e complementares para solução e resolução de conflitos. A Justiça Restaurativa apresenta-se como um modelo complementar de

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resolução de conflitos e que tem a qualidade de poder ser aplicado, a princípio, tanto dentro da estrutura do Poder Judiciário quanto fora dela. Trata-se do modelo da Justiça Restaurativa, que, segundo Pedro Scuro Neto (2010, p. 112), "atende o imperativo psicológico básico da sociedade moderna: o desejo de reconhecimento, pelo qual o indivíduo procura suprimir o estado de tensão que reina na sua fonte pulsional, geradora de necessidades".

2. A justiça restaurativa
2. 1 Essencialidades: entendendo o conceito, características, princípios e valores

O conceito de justiça restaurativa contemplado pela Organização das Nações Unidas (ONU) é aquele enunciado na Resolução n. 2002/12, editada pelo seu Conselho Econômico e Social. Nele, a Justiça Restaurativa é entendida como uma aproximação, através de um processo cooperativo, que privilegia toda forma de ação, individual ou coletiva, em que as partes interessadas, na determinação da melhor solução, buscam corrigir as consequências vivenciadas por ocasião da infração, a resolução do conflito, a reparação do dano (lato senso) e a reconciliação entre as partes.

Para a compreensão do conteúdo do conceito de Justiça Restaurativa, é de fundamental importância a compreensão da dimensão restauradora, conforme Scuro Neto (2000):

‘fazer justiça’ do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemática às infra-ções e a suas consequências, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados por deter-minados incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça, significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstituir, reconstruir; de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo.

No conceito desenvolvido por Pedro Scuro Neto, pode ser destacado que a simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e que é fundamental para as pessoas afetadas pela transgressão da norma, restaurar o trauma emocional - os sentimentos e relacionamentos positivos. E é exatamente a Justiça Restaurativa que será capaz de preencher as necessidades emocionais e de relacionamento, além de ser um dos elementos para o desenvolvimento de uma cultura voltada à paz social.

Nessa forma trabalha-se a ideia de se voltar para o futuro e para restauração dos relacionamentos e não de concentrar-se no passado e na culpa. A justiça convencional diz: "você fez isso e tem de ser castigado!" A justiça restaurativa pergunta: "o que você pode fazer agora para restaurar isso?" (PINTO, 2005).

Azevedo (2005, p. 140), ao seu turno, conceitua a justiça restaurativa como "proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade a estimular: i) a adequada responsabilização por atos lesivos; ii) a assistência material e moral das vítimas; iii) a inclusão de ofensores na comunidade; iv) empoderamento das partes; v) a solidariedade; vi) respeito mútuo entre vítima e ofensor; vii) a humanização das relações processuais em lides penais; e viii) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito".

No contexto, é importante destacar a complementaridade e a plasticidade que se observa na Justiça Restaurativa. Trata-se de um sistema complementar de justiça e, exatamente por isto, não pretende substituir por completo os sistemas vigentes (relação de complementaridade)1. E, por outro lado, destacase que o conceito de Justiça Restaurativa ainda está em construção, pois onde é adotada, toma contornos particulares, de acordo com a realidade social apresentada, ressaltando sua característica plástica.

Para tornar claro o entendimento das ideias que ora se apresentam, faz-se necessário transcrever os referidos princípios e valores da Justiça Restaurativa.

A Carta de 2005 da Conferência Internacional "Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos", ocorrida em Brasília, elenca

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dezoito princípios e valores dos procedimentos restaurativos, a saber:

  1. plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e os procedimentos em que se envolverão os participantes;

  2. autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases;

    - respeito mútuo entre os participantes do encontro;

    - corresponsabilidade ativa dos participantes;

  3. atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades;

  4. envolvimento da comunidade, pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação;

  5. interdisciplinariedade da intervenção;

  6. atenção às diferenças e peculiaridades socioeconômicas e culturais entre os participantes e a comunidade, com respeito à diversidade;

  7. garantia irrestrita dos direitos humanos e do direito à dignidade dos participantes;

    - promoção de relações equânimes e não hierárquicas;

    - expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito;

  8. facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos;

  9. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo;

    - integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação;

    - desenvolvimento de políticas públicas integradas;

  10. interação com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária;

  11. promoção da transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas;

  12. monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários.

    De forma a delimitar adequadamente a prática restaurativa, Howard Zehr2 elaborou cinco diretrizes, por ele denominadas de mandamentos, que são as seguintes:

  13. Dar aos danos causados pela conduta nociva prioridade em relação às regras formais que possam ter sido infringidas.

  14. Mostrar igual preocupação e envolver-se tanto com os infratores quanto com a sorte de suas vítimas.

  15. Trabalhar pela reparação do dano causado, apoiando vítimas, famílias e comunidades, atendendo suas necessidades.

  16. Apoiar os infratores, ao mesmo tempo estimulado-os a entender, aceitar e cumprir com as suas obrigações.

  17. Reconhecer que as obrigações dos infratores não são tarefas impossíveis nem impostas para causar-lhes prejuízo ou sofrimento.

2. 2 Olhares sobre o crime e a realização da justiça3

O quadro abaixo, de Scuro Neto, se aperfeiçoa como uma ferramenta interessante e didática de demonstrar os pressupostos do sistema retributivo e do sistema convencional quanto ao crime e Justiça:

Justiça retributiva Justiça restaurativa
Crime: noção abstrata, infração à lei, ato contra o Estado
...

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