Ressupostos

AutorJosiane Becker
Páginas9-45
9
Capítulo 1
PRESSUPOSTOS
O direito e a moral4 compartilham dois modais deônticos
obrigatórios, permitido e proibido, já que tanto regras jurí-
dicas quanto regras morais reproduzem a exigência de uma
determinada conduta. Além de compartilharem o mesmo co-
mando, podemos encontrar coincidência entre as proposições
jurídicas e as morais na medida em que a justiça pode ser vis-
ta como virtude apaziguadora que instrumentaliza o direito
mediante balizas morais de uma sociedade.
Sobre o tema, Hart assim se manifesta:
As normas morais impõem obrigações e subtraem certas áreas de
conduta à livre opção do indivíduo de agir como desejar. Assim
como um sistema jurídico obviamente contém elementos que se
assemelham de perto aos casos simples de ordens apoiadas por
ameaças, assim, de modo igualmente óbvio, contém também
elementos estreitamente relacionados a certos aspectos da moral.
4. De acordo com Alf Ross (ROSS, Alf. Direito e justiça. Trad. Edson Bini. 2. ed. São
Paulo: Edipro, 2007, p. 87), a moral é uma interpretação metafísica que não possui
padrões científicos, baseada em valores que ultrapassam a ciência da consciência e
estão calcados em princípios inerentes ao indivíduo, ou seja, que independem da
experiência prévia, obtidos por uma consciência a priori. Moral para o autor é in-
trínseca à consciência humana. São suas palavras: “Quando no uso corrente da lin-
guagem se fala da ‘moral’ como se fosse um sistema objetivo de normas análogo ao
‘direito’ está se pagando tributo a uma interpretação metafísica da consciência
como revelação de princípios a priori autoevidentes da razão”.
10
JOSIANE BECKER
Em ambos os casos é igualmente difícil identificar precisamente
qual é a relação, e em ambos existe a tentação de ver na estreita
semelhança uma identidade. Não só o direito e a moral comparti-
lham um mesmo vocabulário, de modo que há obrigações, deve-
res e direitos tanto jurídicos como morais, mas também todos os
sistemas jurídicos internos ou internacionais reproduzem a subs-
tância de certas exigências morais fundamentais.
5
Os anseios e valores cristalizados na moral se constituem
em comandos de ordenação e orientação da conduta humana.
Na mesma medida, a norma jurídica também realiza comandos
e se alimenta dos conceitos morais para expedir novas regras.6
No domínio da moral inexiste o âmbito da força, ou seja,
da coação, que é o traço característico das normas jurídicas.7
E, embora distintas, a ordem moral e a ordem jurídica man-
têm-se ligadas em alguns aspectos, como ao se retroalimenta-
rem na orientação do comportamento humano.
É nesse contexto que verificamos a cristalização univer-
sal da ideia de responsabilidade, já que tanto na moral quan-
to no direito é inerente da atividade humana a ideia da res-
ponsabilidade. A diferença reside no fato de que no campo
da moral a resposta deve ser perquirida no estado de alma do
indivíduo, já na esfera jurídica a responsabilidade resultará
5. HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Pós-escrito organizado
por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; Trad. Antônio de Oliveira Sette-Câmara;
revisão da tradução Marcelo Brandão Copolla; revisão técnica Luiz Vergílio Dalla-
-Rosa. São Paulo: Martins Fontes, p. 9.
6.
Nesse sentido, Alf Ross (ibidem, p. 89) esclarece que: “…a consciência jurídica formal
tem caráter moral e os fenômenos morais são parte essencial dos fenômenos jurídicos”.
7. Sobre a diferença entre moral e direito, Hans Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria geral
das normas. Porto Alegre: Fabris Editor, 1986, p. 30-31) esclarece: “A moral diferencia-
-se do Direito pelo fato de que a reação por aquela prescrita, suas sanções, não têm
como as do Direito o caráter de atos de coação, quer dizer: – como a sanção do Direito
– não são executáveis com o emprego da força física, quando elas enfrentam a resis-
tência, e porque as sanções da Moral não são como as do Direito, não representam
apenas reações a uma conduta contrária à norma, como também reações a uma con-
duta conforme à norma. Assim como a conduta contrária à Moral deve ser desapro-
vada pelos membros da coletividade, a conduta conforme à Moral deve ser por eles
aprovada através de ato de louvor, divulgação da honra e outros atos semelhantes.”
11
FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO
EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
na tentativa de recompor um direito de outrem injustamente
violado, mediante a aplicação de uma sanção.
Não obstante, essa ideia dissociada entre ordem moral e or-
dem jurídica nos traz a lume a possibilidade de a responsabili-
dade moral não encontrar espeque na ordem jurídica nacional,
embora seja intrínseco que a moralidade alimenta a norma ju-
rídica. Nesse sentido, a legislação nem sempre encontra conso-
nância com a moral – já que o dever de reparar o dano sofrido
por alguém é moralmente devido por quem deu causa ao referido
dano, porém a obrigatoriedade de responder por seus atos, cau-
sadores de prejuízo, pode não possuir regra específica positivada.
A esse respeito, cumpre trazer que o estabelecimento do
dever jurídico de não causar prejuízo a outrem é uma função
essencial do direito, embora intrínseco a uma ideia de valor mo-
ral absoluto. A esse respeito, Hans Kelsen bem sintetiza a ideia:
A palavra “dever” (“Pflicht”) está ligada na língua alemã – es-
pecialmente depois da Ética de kant – à ideia de um valor mo-
ral absoluto. O princípio segundo o qual o homem deve cumprir
sempre o seu “dever” ou os seus “deveres” pressupõe eviden-
temente que haja valores absolutos, inteligíveis para todos. De
outro modo, isto é, se se admitisse que não há uma moral ab-
soluta, mas várias e muito diversas ordens morais que prescre-
vem condutas que se contrariam, o princípio citado, que consti-
tui o princípio fundamental da ética Kantiana, reconduzir-se-ia
à tautologia de que o homem deve sempre fazer aquilo que, de
conformidade com a ordem moral tomada em consideração, é
prescrito, ou seja: que ele deve fazer o que deve fazer. O conceito
de dever jurídico refere-se exclusivamente a uma ordem jurídi-
ca positiva e não tem qualquer espécie de implicação moral. Um
dever jurídico pode – embora isso não se verifique necessaria-
mente – ter como conteúdo a mesma conduta que é prescrita em
qualquer sistema moral, mas também pode ter como conteúdo a
conduta oposta, de forma a existir – como costuma-se admitir-se
em tal hipótese – um conflito entre dever jurídico e dever moral.
8
A responsabilidade, como categoria moral que se projeta
para o mundo jurídico, encontra sua origem no princípio do
8.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 131.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT