A resposta legislativa à violência contra as mulheres no Brasil

AutorLeila Linhares Barsted

Leila Linhares Barsted. Advogada, Coordenadora Executiva da Ong CEPIA, Membro do Comitê de Especialistas da OEA para acompanhar a implementação da Convenção de Belém do Pará – MESECVI, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Rio de Janeiro, Brasil. barsted@cepia.org.br

A esperança

Ao longo da década de 19801, a esperança na renovação do Estado brasileiro levou grupos de mulheres a se organizarem em torno de propostas específicas de luta contra a violência e todas as demais formas de discriminação. O rol de propostas abrangia a modificação da legislação civil, a igualdade salarial, melhores oportunidades de emprego e de ascensão profissional, direito à auto-determinação reprodutiva, acesso a serviços de saúde eficientes e creches, sem falar na luta específica contra a violência física, sexual e psicológica.

Com a descompressão política, a partir do inicio dessa década, os movimentos de mulheres inauguraram um diálogo como Estado e, nesse diálogo, especificamente em relação à violência, reivindicavam por políticas públicas que deveriam coibir tanto a violência do Estado quanto a violência de outros poderes sociais.

Uma análise sobre a forma como essas políticas públicas foram negociadas, encaminhadas e implementadas, e como refletiram e sensibilizaram o Estado e a sociedade, permitiria, talvez, tornar mais complexa a compreensão da nossa sociedade e do próprio Estado brasileiro e suas instituições. Em tese, políticas públicas implicam a geração de um conjunto de medidas que pressupõem certa permanência, coerência e articulação dos distintos poderes e esferas de governo. Tais condições implicam, principalmente, vontade política e pressão social. Por outro lado, sua operacionalização esbarra em inúmeros obstáculos, incluindo as descontinuidades administrativas que transformam as políticas públicas de Estado em políticas públicas de governo2.

Os movimentos de mulheres compreenderam que um elemento fundamental na demanda por políticas públicas sociais é a sua formalização legislativa, declarando direitos e criando a obrigação do Estado de garanti-los e implementá-los. Nesse sentido, a compreensão da importância do processo legislativo levou o movimento feminista no Brasil, desde sua constituição na década de 1970, a desenvolver sua capacidade de estabelecer diálogo com o Poder Legislativo, e também com o Poder Executivo, na propositura de leis que completassem a cidadania feminina tolhida, legalmente, em grande parte, pelas disposições do Código Civil de 1916 (Barsted e Garcez, 1999).3

Com a descompressão política e, em seguida, com o processo de redemocratização do País, as mulheres como atores sociais ampliaram sua interlocução com o Estado, em especial com o Poder Executivo, mas continuaram a privilegiar a relação com o Poder Legislativo, especialmente no processo constituinte, por meio do importante apoio e incentivo do recémcriado Conselho Nacional dos Direitos da Mulher4.

As conquistas nacionais e internacionais

A cidadania formal das mulheres foi completada com a Constituição Federal de 1988, que aboliu as inúmeras discriminações5, especialmente no âmbito da legislação sobre a família, coadunando-se com a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979. A Constituição Federal de 1988 reconheceu a igualdade de direitos de homens e mulheres, na vida pública e na vida privada, bem como incorporou em seu texto inúmeros outros direitos individuais e sociais das mulheres.

Ao lado dos avanços internos, a ação do movimento internacional de mulheres impactou as Nações Unidas e outras instituições internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que produziram importantes tratados, convenções, declarações, rcomendações e conferências que, além de denunciarem as violações dos direitos humanos das mulheres, especialmente as violências de toda espécie, produziram impactos positivos nas legislações de inúmeros países, incluindo o Brasil. De fato, desde a década de 1970, as diversas Conferências da Mulher no México, em 1975, em Copenhague, em 1980, e em Nairobi, em 1985, apontaram a violência contra as mulheres como uma ofensa à dignidade humana e instaram os Estados-Partes a assumirem compromissos voltados para a sua eliminação.

Em 1992, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 19 sobre a violência contra a mulher que, expressamente, dispõe que a definição de discriminação contra a mulher, prevista no artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, incluiu a violência baseada no sexo, isto é, aquela ―violência dirigida contra a mulher porque é mulher ou que a afeta de forma desproporcional‖6. Nesse sentido, estabelece que essa Convenção aplica-se à violência perpetrada por agentes públicos ou privados.

Ainda em 1993, em resposta às denúncias dos movimentos de mulheres em todo o mundo, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução 48/104, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, que se constitui em um marco na doutrina jurídica internacional.

Em 1994, essa Declaração subsidiou, com seus princípios e orientações, a elaboração, pela Organização dos Estados Americanos, da Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará), único instrumento internacional voltado para tratar a violência de gênero, assinada naquele mesmo ano pelo Estado Brasileiro e que, ratificando a Declaração de Viena, definiu a violência contra as mulheres como qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado7. Essa Convenção da OEA reconhece que

[…] a violência contra as mulheres incluiu as violências física, sexual e psicológica: a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b) que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimento de saúde ou qualquer outro lugar e que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.8

A conceituação de violência contra a mulher deve ser articulada àquela de discriminação contra a mulher definida pela Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 19759, e reforçada pela Resolução n. 19 da ONU, como toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo

[...] a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bemestar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade.10

Ambas as Convenções, da ONU e da OEA, definem violência e discriminação, declaram direitos e comprometem os Estados-Membros a adotar um conjunto de medidas capazes de erradicar essas violações de direitos humanos nos espaços público e privado, através de políticas públicas que comportem, inclusive, mecanismos capazes de dar visibilidade e mensurar os avanços verificados.

Reconhecendo a persistência da violência contra as mulheres e meninas, as Conferências Internacionais da década de 1990, incluindo a Conferência de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, a População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim, em 1995, transmitiram, em suas Declarações e Planos de Ação, a preocupação com a segurança das mulheres e a necessidade de os Estados-Partes da ONU inserirem em suas agendas nacionais a eqüidade de gênero e de raça/etnia, bem como políticas voltadas para a problemática da violência contra as mulheres e meninas. Nesses Planos de Ação, por influência dos movimentos internacionais de mulheres, a inclusão do tema da violência deu visibilidade às suas conseqüências para a saúde sexual e reprodutiva, bem como ao seu efeito de aprofundar a discriminação contra as mulheres. Nessas Conferências, os Estados-Partes assumiram o compromisso de envidar esforços para a eliminação dessa violência praticada por agentes públicos e privados.

Em dezembro de 1997, a Assembléia das Nações Unidas adotou a Resolução 52/86, conclamando os Estados-Partes a revisarem suas leis e práticas nas esferas criminal e social, de forma a atender melhor às necessidades das mulheres e lhes assegurar tratamento justo no sistema de justiça. Essa Resolução inclui um Anexo sobre Modelos de Estratégias e Medidas Práticas sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres no Campo da Prevenção de Crimes e da Justiça Criminal.

Em grande medida, por força da Constituição Federal Brasileira de 1988 e dos Tratados e Convenções internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, toda a parte sobre o direito de família do Código Civil de 1916 foi revogada. Em 2002, o novo Código Civil recepcionou a Constituição Federal, igualando homens e...

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