Decisão judicial e resposta correta: o problema da objetividade na interpretação constitucional

AutorLucas Borges De Carvalho
CargoProcurador Federal em Marília, São Paulo. Mestre em Direito pela UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: lucas.carvalho@agu.gov.br.
Páginas1-16

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1. Introdução

Nos últimos anos, tornou-se prática comum a maior intervenção dos tribunais na esfera política. Se não todos, pelo menos uma parcela considerável dos mais relevantes e polêmicos temas discutidos na agenda política brasileira recente foram objeto de decisões judiciais. Nesse contexto, de poder técnico e imparcial o judiciário se converteu em uma instituição altamente politizada e de grande visibilidade perante a opinião pública, tornandose alvo de fortes críticas, que levantaram dúvidas quanto à legitimidade de suas decisões.

Não por outro motivo, boa parte dos estudos na seara da filosofia do direito e da teoria constitucional se voltou para o problema da racionalidade e do controle das decisões judiciais. O desafio é, justamente, o de compatibilizar o maior protagonismo dos tribunais com a separação de poderes e com o princípio majoritário, evitando-se uma usurpação de funções e uma interferência abusiva na esfera de competência das instituições republicanas.

Neste trabalho, tomando esta nova configuração da realidade política do país como pano de fundo, discuto o problema da objetividade na interpretação constitucional com o Page 2 objetivo específico de analisar a tese da resposta correta, tal como proposta pelo jurista estadunidense Ronald Dworkin.

O que pretendo demonstrar é que esta polêmica tese - muito conhecida, mas pouco compreendida - nos permite pôr em questão a teoria positivista da interpretação do direito, avançando na busca por novos fundamentos teóricos e epistemológicos para se pensar o controle racional e democrático das decisões judiciais. O ceticismo positivista, eis a questão, é uma teoria incompatível com o atual desenho político-institucional do país, posto que conta com instrumentais teóricos muito limitados, insuficientes para oferecer respostas satisfatórias aos principais problemas constitucionais da atualidade.

2. Positivismo jurídico e discricionariedade judicial

O positivismo jurídico é uma concepção cética do direito. Autores como Kelsen, por exemplo, tomam como dado da experiência a relatividade dos valores e, com ela, a impossibilidade de se estabelecer objetivamente e com exatidão a prioridade de um valor substantivo sobre outro. Por isso mesmo, "a nenhuma ordem jurídica positiva pode recusar-se validade por causa do conteúdo das suas normas. É este um elemento essencial do positivismo jurídico".1

De acordo com essa perspectiva, o direito é uma espécie de catálogo de regras que estabelecem direitos e deveres. Quando uma regra é vaga, ambígua ou lacunosa, isto é, quando o catálogo de direitos se esgota, é necessário recorrer - paradoxalmente - a padrões não-jurídicos para criar uma nova regra ou complementar uma existente. Esse ato - criativo e valorativo, por excelência - não é controlável, uma vez que esses padrões, por não fazerem parte do direito, não são obrigatórios, nem verificáveis. Ao agir assim, os juízes decidem discricionariamente. Agem de forma política, escolhendo uma dentre as várias interpretações possíveis.

Dito de outra forma, a ciência jurídica propriamente dita limita-se a emitir juízos de fato - isto é, proposições descritivas, cuja veracidade pode ser atestada mediante a verificação Page 3 da equivalência de seu enunciado com a norma-objeto descrita. Diferentemente do âmbito jurídico-prático, de aplicação do direito, no qual, em regra, são emitidos juízos de valor, assentes em proposições prescritivas, que sugerem alguma espécie de modificação no direito a partir de critérios não-objetivos (ideológicos, políticos ou morais). Assim, enquanto o primeiro tipo de enunciado é dotado de objetividade e pureza científica, o segundo tipo, isto é, o juízo de valor, carece de significação jurídico-científica, constituindo um ato não verificável.

O positivismo propõe, nesse aspecto, uma teoria bifásica da interpretação jurídica ou da decisão judicial.2 Num primeiro momento, que é a fase jurídica propriamente dita, podemse apontar com exatidão quais as interpretações possíveis para o caso. É o que Kelsen denomina de ato de conhecimento, que possibilita ao jurista descrever as possibilidades significativas de uma determinada norma.3

Mas a interpretação não se resume a esse ato: envolve também um segundo momento, no qual o órgão aplicador do direito opta, discricionariamente, por um daqueles sentidos definidos na primeira fase. Este último ato - enquanto ato de vontade - é, por assim dizer, um ato arbitrário, de maneira que não se pode cientificamente determinar qual a decisão correta ou, por outros termos, uma única decisão como a mais justa ou verdadeira. Assim, segundo Kelsen, desde que adequadas à moldura da norma que fundamenta o caso, todas as interpretações são igualmente aceitáveis.

De forma semelhante, para Hart, toda regra jurídica enuncia (1) um núcleo de certeza e (2) um núcleo de imprecisão, uma penumbra de dúvida.4 No primeiro caso, a aplicação é certa, clara e segura. São os casos fáceis, nos quais a aplicação do direito se dá sem muitas controvérsias, podendo ser representada por um esquema silogístico simplório. Diante de um esbulho realizado por um vizinho, por exemplo, um possuidor tem o direito a ser reintegrado na posse de seu imóvel.

Já no segundo caso, a interpretação da norma não é tão clara, de maneira que há razões convincentes para aplicar a regra tanto em um sentido como em outro. É o que Hart chama de textura aberta da norma, uma zona de incertezas fruto da imprecisão da linguagem humana, que é incapaz de oferecer prescrições claras e exatas a todos os fatos e acontecimentos Page 4 futuros. Assim, valendo-se do mesmo exemplo, a garantia da reintegração de posse não seria tão evidente se o imóvel fosse improdutivo e se o esbulho fosse realizado como parte de manifestações em prol da reforma agrária. Nesta hipótese, conforme a teoria de Hart, não haveria como dizer qual a resposta correta ao caso - ou seja, se o possuidor esbulhado tem ou não direito a ser reintegrado na posse - pois ambas as interpretações seriam possíveis. O juiz escolheria uma das alternativas apenas por ser a mais aconselhável segundo suas próprias convicções, mas não teria como afirmar que se trata da escolha correta.5

É contra esse modelo que Dworkin se insurge. De início, o autor estadunidense procura compreender qual o real significado da "discricionariedade judicial" pressuposta pelos autores positivistas. Em um sentido fraco do termo, a discricionariedade pode ser entendida como a capacidade do sujeito interpretar o direito segundo suas próprias convicções. Assim, pode-se dizer que o juiz decide de acordo com seu próprio discernimento, exercitando alguma capacidade particular de avaliação. Esta, no entanto, é uma definição trivial (e tautológica) do termo, pois se refere a uma característica inerente a qualquer ato de julgar, sem maiores conseqüências, portanto, para a controvérsia em questão.6

Mas a tese positivista não menciona apenas esse sentido trivial da discricionariedade. Ela pressupõe uma outra definição, um sentido forte do termo, segundo o qual o juiz não está vinculado a padrões de nenhuma outra autoridade para decidir os casos difíceis. Afinal, quando o direito se esgota não há qualquer padrão jurídico imperativo ou objetivo que imponha aos juízes o dever legal de decidir em determinado sentido.

Dworkin acata a primeira definição - de uma forma ou de outra, sempre interpretamos a partir das nossas próprias convicções - mas rechaça a segunda. O cerne de seu argumento contra a discricionariedade judicial, no sentido forte do termo, encontra-se na concepção de que o direito é composto tanto por regras como por princípios.7 Estes não são padrões extra- jurídicos, que podem ser utilizados ao bel-prazer dos juízes. São padrões jurídicos obrigatórios, de maneira que os juízes têm o dever de elaborar a melhor interpretação possível Page 5 do caso, determinando quais direitos as partes têm ou não, mesmo diante de "lacunas" ou "ambigüidades" das regras.

A diferença, nesse aspecto, é que o positivismo pressupõe a existência de uma moralidade convencional, ou seja, uma moralidade que apenas se legitima em virtude de um acordo ou de uma convenção que, expressamente, lhe dá origem. A lei, nesse sentido, seria válida tão-somente porque fruto de alguma espécie de deliberação comum.

O que Dworkin chama a atenção em suas análises é que nos sistemas jurídicos contemporâneos uma parcela considerável de princípios morais e legais decorre do que ele chama de moralidade concorrente. Nestes casos, ignorados pelos positivistas, os membros de uma comunidade também concordam em afirmar a existência de determinado princípio, mas o acordo é secundário para legitimar a sua pretensão de validade. É o próprio conteúdo do princípio que lhe confere sustentabilidade e aceitação, de modo que o consenso dura tãosomente enquanto a maioria dos juristas e cidadãos aceita as convicções substantivas que o amparam.8

Assim, no primeiro caso, seria decisivo para considerar, por exemplo, a homossexualidade imoral, o fato de que a maioria das pessoas assim pensa, independentemente do conteúdo dessa proposição expressar um posicionamento discriminatório, que fere o importante princípio moral consagrador da liberdade de orientação sexual. De forma diversa, na hipótese de moralidade concorrente, a ofensa a tais princípios morais, por si só, tornaria indefensável essa proposição, sendo secundário o fato de que grande parte das pessoas concorda com sua veracidade.9

Como se observa, a teoria de Dworkin admite como fontes do direito não apenas as convenções e as deliberações, que fornecem elementos formais para a identificação do direito, mas também uma moralidade não convencional, que se sustenta na substância das proposições. É a compreensão dessa moralidade, tão comum nas práticas cotidianas dos juristas, e a...

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