A responsabilizacao da familia na cena contemporanea: particularizando o Programa Crianca Feliz/Family responsibilization in the contemporary scenario: particularizing the Happy Child Program.

AutorArcoverde, Ana Cristina Brito

Introducao

O presente artigo constitui-se numa reflexao teorica. Desse modo, visa analisar elementos contraditorios que podem resultar na culpabilizacao das familias na conjuntura contemporanea de regressao de direitos.

Intensificam-se os retrocessos nos direitos e nas politicas sociais, com enfoque na criacao de programas que caminham na contramao da politica de assistencia social e que, portanto, tendem a resultar em impactos significativos. Assim, particularizamos o Programa Crianca Feliz, instituido atraves do Decreto no 8.869, de 5 de outubro de 2016, no Brasil (BRASIL, 2016b). O objetivo, assim, e identificar as especificidades do processo de desresponsabilizacao do Estado diante das necessidades sociais, desenvolvendo estrategias que exigem maior atuacao da familia no provimento da protecao social, como propoe o referido programa.

O trabalho esta organizado em tres momentos. Inicialmente, abordam-se as configuracoes da cena contemporanea, salientando a crise estrutural do capital e, consequentemente, as estrategias desenvolvidas pelo sistema capitalista com o intuito de manter a acumulacao, ao mesmo tempo em que restringe direitos e politicas sociais. Posteriormente, ressaltam-se as novas relacoes estabelecidas entre a familia e as politicas sociais na conjuntura de regressao de direitos. Desse modo, e analisado um contexto de culpabilizacao dessas familias por meio de maior responsabilizacao para provimento de protecao social, uma vez que cabe aos pais e/ou responsaveis o entendimento de prover o bem-estar de seus filhos, independentemente do contexto social vivenciado.

Por fim, discutem-se as caracteristicas do Programa Crianca Feliz, considerado uma nova estrategia para intensificar a desresponsabilizacao do Estado e o proprio desmonte das politicas sociais, pois institui uma metodologia de atendimento (1) pautada em principios da politica de saude e da assistencia social, porem, divergindo dos servicos socioassistenciais. O referido programa constitui-se num importante mecanismo de retrocesso e desprotecao social e, portanto, precisa ser estudado criticamente.

As familias inseridas num sistema antagonico e explorador, ao enfrentarem uma conjuntura de retrocesso e regressao de direitos, intensificada apos o Golpe 2016, nao possuem condicoes de prover protecao social sem o apoio do aparelho estatal. Assim sendo, nao e subtraindo suas funcoes que o atendimento aos sujeitos em vulnerabilidade sera viabilizado, uma vez que, enquanto prevalecer o sistema capitalista, ao Estado cabe o dever de garantir direitos e, dessa maneira, a protecao social. Entretanto, a responsabilizacao da familia na contemporaneidade constitui-se numa estrategia que resulta em desprotecao social.

Crise e as novas estrategias do capital: o desmonte das politicas sociais

O modo de producao capitalista e caracterizado por particularidades que explicitam contradicoes inerentes a duas classes antagonicas, os trabalhadores e os capitalistas. Assim sendo, as relacoes sociais sao permeadas de interesses divergentes, em que o que beneficia uma classe nao se configura em beneficios para outra. Essa realidade e mais perceptivel ainda em momentos como o do cenario atual, de aprofundamento da crise estrutural do sistema do capital, conforme aponta Meszaros (2002).

A crise (2) e inerente ao sistema capitalista, pois e imprescindivel para seu desenvolvimento e constitui-se, portanto, como ciclica. Todavia, em momentos de crise este capital necessita estabelecer estrategias de enfrentamento e/ou superacao da mesma, visando reestruturar seu poder dominante e mantendo a acumulacao e a lucratividade. Ou seja, esses desequilibrios podem nao alterar e/ou impactar o processo de aumento de sua riqueza, de modo que podemos pensar as crises economicas nao como momentos de colapso da reproducao ampliada do capital, mas como mecanismo atraves do qual a lei do valor se impoe (MANDEL, 1990).

Ao desenvolver formas de reestruturar o capital, sao adotadas medidas de enfrentamento em detrimento dos direitos da classe trabalhadora; dessa maneira, e imprescindivel readequar o processo de producao, alterando tambem as relacoes sociais de reproducao. Nas conjunturas de crise economica, o desenlace desse movimento torna-se mais explicito, pois a necessidade de criar mecanismos de contratendencia a queda tendencial da taxa de lucro revela a estreita vinculacao entre os requerimentos do processo de valorizacao e realizacao do capital e as condicoes sociopoliticas. Sob elas, o capital procura superar as crises de sua reproducao, sem perder a condicao de classe hegemonica, valendo-se, dentre outras medidas, das politicas sociais, como bem postula Mota (2015).

Acompanha-se, entao, um reordenamento das politicas sociais, no qual a funcao social do aparelho estatal e subtraida. Assim sendo, no contexto de recorte neoliberal, o atendimento as necessidades sociais e destinado ao mercado, ao terceiro setor e as familias, exigindo, portanto, maior participacao da sociedade civil no provimento da protecao social.

Ao ampliarem-se no pos-golpe de 2016 os novos mecanismos de exploracao da forca de trabalho, de supressao de direitos sociais e especialmente de privatizacao e/ou mercantilizacao da educacao, da saude, da previdencia e, consequentemente, dos servicos publicos, nos parece que a familia assume lugar ainda mais estrategico no processamento desses mecanismos, especialmente em relacao a privatizacao da provisao de bem-estar. (HORST; MIOTO, 2017, p. 228-246). Diante de tal conjuntura, intensifica-se a demanda por um Estado que atue com politicas residuais e compensatorias. Para tanto, sao desenvolvidas estrategias de restricao de acesso a bens e servicos publicos, com brutal contencao de gastos e, consequentemente, desresponsabilizacao do aparelho estatal.

Esta realidade resulta em sucateamento, desmonte e retrocesso. Nesse contexto, as politicas sociais referentes ao tripe da Seguridade Social passaram a ser estrategicamente intensificadas, devido ao desmonte dos direitos sociais e trabalhistas, como meio de combate as mudancas objetivas e subjetivas advindas da nova organizacao do mundo do trabalho e de enfrentamento das crises. Portanto, as politicas sociais sao transformadas em mercadorias para valorizacao do capital.

Diante da crise, seja estrutural ou conjuntural, ha tendencia de aprofundamento da economia capitalista em relacao a regulacao das relacoes sociais de producao e reproducao, logo, das politicas sociais. De acordo com Boschetti (2016), a restauracao capitalista apos a decada de 1970, sob a hegemonia neoliberal, provocou a irrupcao da crise de 2008, ainda em curso. Assim, as particularidades da crise contemporanea poem sob novas condicoes as relacoes entre trabalho, assistencia social e seguro na estruturacao do Estado social capitalista.

Destarte, acompanha-se a um desmonte da Seguridade Social, com impactos na Protecao Social e regressao de direitos, alem da implementacao intensa de cortes nos programas de transferencia de renda, como o Bolsa Familia, e desenvolvimento de novos programas paralelos aos existentes, como o Crianca Feliz. Esses processos repercutem em efeitos contraditorios no tocante a melhoria das condicoes de vida das familias que se encontram em situacao de vulnerabilidade. Tendo isso em vista, "o avanco do capital sobre as politicas sociais e um traco do capitalismo contemporaneo" (MARQUES, 2018, p. 109).

Portanto, ao desenvolver novas estrategias para reestruturar o poder dominante, a sociedade capitalista intensifica a expropriacao dos direitos sociais e trabalhistas, configurando um desmonte da Protecao Social. Neste sentido, as politicas sociais perdem dimensoes de sua funcionalidade, ocorrendo sua reducao, fragmentacao e focalizacao na pobreza e na financeirizacao. Exige-se, destarte, maior participacao de outros atores sociais...

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