Responsabilidades da Federação Paulista de Futebol (FPF) em face do Estatuto do Torcedor

AutorMislaine Scarelli
Páginas93-104

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1. Introdução

Diante do desenvolvimento e evolução do mercado esportivo, novas demandas foram surgindo no tocante à relação havida entre os torcedores e as entidades organizadoras das competições, sendo que, a partir da Lei Geral Sobre o Desporto (Lei n. 9.615/1998) os primeiros foram equiparados, para todos os efeitos legais, aos consumidores em geral – na forma trazida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990).

Entretanto, a relação de consumo desportiva possui características e finalidades próprias, tornando imperiosa a criação de uma legislação específica para a proteção do consumidor inserido no âmbito do desporto.

Tal fato se verificou, uma vez que, no que se refere à organização esportiva, os responsáveis desta nunca consideraram o evento esportivo como um produto na acepção ampla do termo, onde o fornecedor deve se preocupar com a qualidade deste a fim de manter a fidelidade do cliente.

Assim, costumeiramente se verificavam falhas na segurança, higiene, organização e proteção dos torcedores quando de seu comparecimento nos estádios. Da mesma forma, por muitas vezes, as competições não se revestiam da transparência e publicidade esperadas no estágio atual do desenvolvimento de nossa sociedade.

Acrescenta-se ainda a figura das torcidas organizadas que, ao mesmo tempo em que contribuem para o espetáculo, o prejudicam diante das intermináveis notícias de violência cometida por seus integrantes.

Neste contexto é que foi editada a Lei n. 10.671/2003, alterada posteriormente pela Lei n. 10.299/2010. Tal dispositivo legal trouxe em seu bojo a proteção dos torcedores e de seus direitos e garantias fundamentais.

Especificamente no mercado do futebol, no que se refere à organização das partidas e campeonatos, as obrigações inerentes a estas e seus eventuais tutelados se dividem entre todos os entes envolvidos, não sendo de responsabilidade exclusiva de entidade específica.

A Federação Paulista de Futebol (FPF) é a entidade responsável pela coordenação e organização do futebol no âmbito do estado de São Paulo, por delegação da Confederação Brasileira de Futebol. Entretanto, no que se refere aos campeonatos, atua especificamente nos trabalhos de coordenação e fiscalização.

Ocorre que, no que tange à organização das partidas em si, tal responsabilidade cabe aos clubes detentores do mando de campo, não tendo a FPF ingerência direta sobre a organização e logística necessárias para viabilização do evento.

E não poderia ser diferente, uma vez que, na realidade atual do futebol, tendo em vista as novas arenas e a exploração comercial do “dia de jogo” pelos clubes como fonte de renda considerável, não seria salutar que a FPF fosse a responsável por tal administração.

Em razão disso, o Estatuto apresentou diversas disposições de observação obrigatória pelos clubes, e algumas tantas outras pela FPF. Entretanto, conforme será demonstrado, tais entidades concorrem na responsabilidade pela observância de alguns destes requisitos.

2. Princípios do desporto

O desporto como direito fundamental do cidadão foi garantido a partir da Constituição Federal de 1988.

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Trata-se de uma manifestação social, sendo que, sua organização e funcionamento possui autonomia constitucional garantida por força do disposto no art. 217 da Carta Magna.

Entretanto, por estar inserido no ordenamento jurídico nacional, este sofre a influência de todos os princípios gerais do direito lá postos. Por outro lado, alguns desses princípios possuem maior influência no ramo do direito desportivo.

Diante de tal fato, analisaremos os princípios gerais do direito pátrio aplicados ao desporto, bem como os princípios específicos do direito desportivo.

2.1. Princípios gerais aplicados ao desporto

O constituinte originário estabeleceu como preceito fundamental e de responsabilidade do Estado o fomento às práticas esportivas. Individualizando os princípios mais importantes aplicados ao desporto, temos precipuamente o “Princípio da Legalidade”, podendo ser assim definido:

Além de garantir a liberdade dos atores do ordenamento jurídico-desportivo nacional, na medida em que, inseridos na jurisdição Estatal sob o regime jurídico das pessoas de Direito Privado, são livres para fazer tudo o que a lei não proíbe expressamente, revestem as normas desportivas de eficácia e efetividade, uma vez que concede a elas o caráter obrigatório àqueles submetidos à sua jurisdição. Portanto, é em razão do Princípio da Legalidade que os Estatutos das Associações Desportivas possuem força de lei para os seus associados.1

Outro princípio geral do direito fundamental de influência no desporto se trata do “Princípio da Liberdade de Associação”, por meio do qual é garantida a qualquer pessoa se associar a outra, ou a entidades, a fim de pro-mover o esporte.

O princípio da liberdade de associação é, pois, pedra de toque para o Direito Desportivo, mun-dial e pátrio. Ex vi dele é que se pode conceber a possibilidade de que pessoas interessadas em promover o desporto possam criar um clube ou uma liga, que juntos integrarão uma Federação e que, juntos, constituirão a Confederação.2

Cabe ressaltar que tal princípio é fundamental para o desporto nacional e internacional, uma vez que todo o desporto mundial obedece ao o sistema federativo-associativo.

A Constituição Federal prevê ainda dois princípios específicos do desporto e que serão tratados abaixo, quais sejam: “Princípio da Autonomia das entidades esportivas” e o “Princípio da Não-Intervenção Estatal”. Na realidade, tais princípios possuem íntima ligação, sendo indissociáveis um do outro.

Por fim, acrescente-se o “Princípio da Inafastabili-dade do Controle Jurisdicional”, inerente a toda e qualquer relação estabelecida em território nacional. Entretanto, em relação ao desporto, tal princípio encontra sua exceção.

O jurista Pedro Trengrouse a denomina como “Princípio da Excepcionalidade Jurisdicional”, que para ele remete-se:

Defendemos a ideia de que a Justiça Desportiva deve ser soberana para processar e julgar, desde que observados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, as questões de mérito puramente desportivo, pois, do contrário, seria admitir a Justiça Desportiva como desnecessária, uma vez que suas decisões estariam sempre ameaçadas pela revisão judicial, o que é um contrassenso, na medida em que dentre as razões de ser da Justiça Desportiva encontramos a carência de um meio célere e possuidor do conhecimento específico requeridos, pelas questões desportiva; e se o poder Judiciário preenchesse tais requisitos, não haveria o porquê de uma Justiça Desportiva; logo, admitir a revisão das decisões da Justiça Desportiva pelo Poder Judiciário, além de afrontar garantias e princípios fundamentais da Constituição, se traduz na negação das razões que levaram o constituinte a consagrar a Justiça Desportiva como a única exceção ao Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional.

Evidente que, conforme já mencionado, ao des-porto se aplicam todos os princípios inerente ao Estado Democrático de Direito, entretanto, os princípios acima expostos possuem maior importância e influência na seara do direito desportivo.

Não obstante a aplicação dos princípios gerais do direito ao desporto, o universo do direito desportivo congrega princípios próprios que visam harmonizar e estruturar o sistema desportivo nacional e internacional.

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Assim, os princípios desportivos se encontram positivados no ordenamento jurídico nacional, sendo que
alguns deles encontram previsão na própria Constituição Federal, enquanto que outros estão positivados na
legislação infraconstitucional.

Dentre os princípios constitucionais do desporto, encontram-se o princípio da autonomia das entidades desportivas; o princípio da destinação prioritária dos recursos; do tratamento diferenciado entre o desporto profissional e não profissional; e o do esgotamento da justiça desportiva.

O princípio da autonomia das entidades desportivas a tempos causa divergência entre os estudiosos do direito quanto à sua aplicação, tendo sido inclusive invocado para a contestação da constitucionalidade do próprio Estatuto do Torcedor, conforme será tratado no decorrer deste artigo.

Tal princípio advém do quanto previsto no art. 217 da Constituição Federal, prevê de maneira expressamente o dever do Estado em observar, dentre outras coisas, a autonomia das entidades de administração do desporto e das associações de prática esportiva quanto a sua organização e funcionamento, mantendo-a preservada de qualquer interferência estatal. Entretanto tal autonomia não é absoluta, de modo que devam ser respeitados al-guns limites impostos pela legislação ordinária:

No que se refere ao princípio do esgotamento das instâncias da justiça desportiva, intentou o legislador em garantir que as questões disciplinares oriundas da prática esportiva fossem julgadas e mantidas em tribunais próprios e com maior conhecimento técnico sobre as nuances de cada modalidade, contribuindo para uma solução justa e mais célere do que ocorreria se tais questões fossem levadas perante os tribunais estatais, notadamente despreparados para lidar com as peculiaridades do direito desportivo.

Ainda, a legislação infraconstitucional apresenta princípios aplicáveis ao desporto, estando eles encartados no art. 2º da Lei Geral Sobre o Desporto (Lei
n. 9.615/1998). Inclusive, muitos dos princípios apresentados neste artigo são reflexos e desdobramentos dos princípios constitucionais já apresentados.

Prosseguindo, a legislação...

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