Responsabilidade por verbas trabalhistas

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas586-605

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I Introdução

O estudo da responsabilidade por verbas derivadas do contrato empregatício envolve algumas situações principais.

Em primeiro plano, a responsabilidade do empregador e das entidades integrantes do grupo econômico.

Em segundo plano, a responsabilidade do sócio da entidade societária empregadora.

Em terceiro plano, despontam as situações de terceirização trabalhista, inclusive trabalho temporário.

Em quarto plano, destaca-se a responsabilidade específica do subempreiteiro, que ostenta norma celetista própria.

Em quinto plano (e próximo aos dois anteriores), há que discorrer sobre o debate acerca da responsabilidade (ou não) do dono da obra.

Por fim, cabe-se ressaltar, em sexto plano, a situação de responsabilização trabalhista que envolve a figura do consórcio de empregadores.1

II Responsabilidade do empregador e entes integrantes do grupo econômico

A responsabilidade pela quitação das verbas trabalhistas deriva, a princípio, da posição assumida, pelo empregador, na relação jurídica empregatícia, compondo o polo passivo dessa relação. Essa é a norma geral e recorrente do Direito do Trabalho, que não foge, assim, da conduta geral também prevalecente no restante do Direito: o devedor principal (na hipótese justrabalhista, o empregador), integrante direto da relação jurídica entre as partes e beneficiário principal e imediato de seus efeitos, é que responde pelas obrigações resultantes dessa relação.

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Afora o empregador típico, permite o Direito do Trabalho que também assuma essa posição a entidade componente de grupo econômico — ainda que não se tenha valido diretamente dos serviços efetivos do obreiro, contratado por outra entidade do mesmo grupo (Súmula 129, TST). Nesse caso, os integrantes do grupo serão responsáveis solidariamente pelas verbas resultantes do respectivo contrato de trabalho, em função da qualidade de empregador que lhes foi reconhecida pela ordem jurídica. (art. 2º, § 2º, CLT, art. 3º, § 2º, Lei n. 5.889/73)2

No caso de terceirização irregular, ilícita, em que se reconhece o vínculo empregatício com o efetivo tomador de serviços (conforme estipulado, originalmente, na Súmula 256 e, desde 1993, na Súmula 331, TST), a responsabilidade que surge para o tomador não é distinta das duas situações acima figuradas. É que, aqui, o tomador de serviços passa a assumir a posição de empregador, desfazendo-se judicialmente a relação simulada com a empresa terceirizante. Desse modo, a terceirização ilícita, judicialmente desfeita, com fixação de vínculo empregatício do trabalhador com o real contratante e beneficiário dos serviços, diz respeito a mais uma hipótese de responsabilização decorrente do vínculo empregatício reconhecido3.

Existem situações fático-jurídicas, entretanto, tratadas de modo distinto pelo Direito do Trabalho. São situações em que a ordem jurídica estabelece tão somente responsabilidade (solidária ou subsidiária) pelas verbas trabalhistas derivadas de uma relação de emprego, sem conferir, contudo, ao responsabilizado a qualidade jurídica de empregador. Não se reconhece relação de emprego (essa relação verificou-se com outra pessoa física ou jurídica); reconhece-se apenas responsabilidade pelo pagamento das verbas resultantes.

Claro que, nestas últimas situações aventadas, o empregador sempre será o responsável original pelas verbas oriundas do contrato empregatício. Fixa o Direito do Trabalho, entretanto, concomitantemente, também a possibilidade de responsabilização de outras pessoas físicas ou jurídicas pelas verbas derivadas daquele contrato. Trata-se, desse modo, de situações em que a responsabilidade trabalhista recai sobre pessoas não empregadoras (embora, obviamente, em função de um nexo relacional forte com o vínculo empregatício surgido entre as partes originais da relação de emprego).

As situações mais conhecidas em que se debate sobre a responsabilização trabalhista do não empregador serão estudadas nos itens III, IV, V e VI, logo a seguir.

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III Responsabilidade do sócio
1. Panorama Normativo

A legislação processual civil estabelece que ficam sujeitos à execução os bens do sócio, nos termos da lei (art. 592, caput, e inciso II, CPC/1973; art. 790, II, CPC/2015). Esclarece a lei processual civil que “os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei (art. 596, caput, CPC/1973; grifos acrescidos; art. 795, caput, CPC/2015). Está claro, portanto, que não obstante a pessoa jurídica se distinga de seus membros (art. 20, CCB/1916; art. 50, CCB-2002, contrario sensu), admite a ordem jurídica, em certos casos, a responsabilização do sócio pelas dívidas societárias.

O sócio dotado de responsabilidade ilimitada e solidária pelas obrigações sociais obviamente sempre responderá por qualquer dívida da entidade societária respectiva. É o que se passa, por exemplo, com as sociedades em nome coletivo, as sociedades em comum, inclusive as sociedades de fato.

No tocante às tradicionais sociedades por cotas de responsabilidade limitada, a jurisprudência trabalhista firmemente já ampliou as hipóteses de responsabilização do sócio-gerente (ou sócio controlador, quando não o gerente) por além daquelas previstas na clássica lei reguladora da figura jurídica (Decreto n. 3.708, de 1919). O fundamento central para a afirmação da responsabilidade dos sócios dessa entidade societária — assim como de outras que já não tenham regra civil ou comercial expressa de responsabilização — reside no princípio da despersonalização do empregador, que é inerente ao Direito do Trabalho. Tal princípio, inserto em distintos preceitos da CLT (tal como art. 2º, caput; art. 2º, § 2º; art. 10; art. 448, todos da Consolidação), acentua, entre outros aspectos, que, por além do envoltório formal da pessoa jurídica empregadora, releva destacar o fato econômico e social da própria empresa, como núcleo de interesses, poder e vantagens, de um lado, mas também de ônus e responsabilidades no contexto da relação empregatícia. Esse fato econômico e social envolve também os sócios integrantes da entidade societária, partícipes desse núcleo de interesses, poder e vantagens, mas também de ônus e responsabilidades. Repita-se: o sentido funcional conferido à expressão empresa, pela CLT, ao se referir ao empregador (caput do art. 2º; art. 10; art. 448, por exemplo), evidencia a intenção da ordem jurídica de sobrelevar o fato da organização empresarial, enquanto complexo de relações materiais, imateriais e de sujeitos jurídicos, independentemente do envoltório formal a presidir sua atuação no campo da economia e da sociedade.

Agrega-se ao mencionado princípio da despersonalização do empregador a circunstância de a ordem jurídica trabalhista enfatizar a necessária

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assunção, pelo mesmo empregador, dos riscos do empreendimento e do próprio trabalho empregaticiamente contratado (caput do art. 2º da CLT, por exemplo).

Em síntese, o princípio da assunção, pelo empregador, dos riscos do empreendimento, inclusive os riscos e ônus trabalhistas, somado ao princípio da despersonalização do empregador, ambos atávicos ao Direito do Trabalho e seu estuário normativo próprio, asseguram a responsabilização subsidiária dos sócios da entidade societária, caso frustrada a execução processual trabalhista com respeito ao patrimônio da empresa empregadora.

Pelos mesmos fundamentos, tal responsabilidade, de maneira geral, tem sido estendida, no plano do Direito do Trabalho, aos demais sócios, independentemente de terem (ou não) participação na gestão societária.

O advento de nova regulação do Direito de Empresa pelo Código Civil, reestruturando a anterior sociedade por cotas de responsabilidade limitada (arts. 1.052 a 1.065, CCB/2002), não tem o condão de modificar o já sedimentado posicionamento jurisprudencial trabalhista, no sentido de responsabilizar o sócio da entidade societária pelas dívidas trabalhistas desta. O novo CCB até mesmo explicita a incorporação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (vide art. 50, CCB-2002), há décadas já adotada, com leitura própria, no âmbito laborativo.

2. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine; disregard of legal entity doctrine; lifting the corporate veil doctrine), quer em sua origem na Common Law norte-americana e britânica, quer em sua absorção por outros campos jurídicos da tradição romano-germânica, inclusive o Brasil, tem conotação mais restrita do que a perfilada pelo Direito do Trabalho, como se sabe. Na seara justrabalhista, a noção de despersonalização da figura do empregador é, sem dúvida, mais ampla, de maneira a assegurar a efetividade dos direitos sociais fundamentais trabalhistas também pelo patrimônio dos sócios das entidades societárias, em caso de frustração da execução com respeito ao patrimônio da respectiva sociedade empregadora — independentemente de comprovação de fraude ou vícios congêneres na gestão empresarial ou no uso da fórmula da pessoa jurídica.4

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Note-se, de todo modo, que é manifesta a absorção pela ordem jurídica brasileira, mesmo a não trabalhista, da relativização das fronteiras existentes entre as obrigações da entidade societária e o patrimônio dos respectivos sócios. Essa relativização, conforme visto, já se expressa na legislação processual civil, tanto no...

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