A responsabilidade social empresarial, os novos capitalistas e as relações de trabalho

AutorCarolina Pereira Mercante
CargoProcuradora do Trabalho
Páginas429-442

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Introdução

Os avanços tecnológicos e a consequente mundialização da produção, do consumo e da circulação das finanças vêm remodelando

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as estruturas das relações laborais. Empregos estáveis e bem remunerados são cada vez mais raros no mercado. O atual estágio do sistema capitalista apresenta vulnerabilidades sociais que se consubstanciam no aumento do desemprego e das ocupações precárias.

Contudo, a visão de que o trabalho configura-se como elemento propulsor da produção ainda subsiste. Ricardo Antunes observa o surgimento de uma nova forma de ser do trabalho, em que são predominantes as tarefas de esforço intelectual. Para ele, o trabalho tem se tornado heterogeneizado, complexificado e ainda mais intensificado nos seus ritmos e processos (2002, p. 159).

A tentativa de equilibrar interesses conflitantes existentes no sistema capitalista, especialmente o embate entre o direito a um emprego de boa qualidade e o alcance de menores custos e maiores lucros pelas empresas, é instrumentalizada por fatores jurídicos, tais como a legislação social e o direito de propriedade e fatores extrajurídicos, com destaque para os movimentos de responsabilidade social empresarial e as tendências do mercado internacional.

Em paralelo a esses conflitos, é crescente o número de empresas engajadas em programas de responsabilidade social, que, além de promover obras assistenciais em variados setores (educação, saúde, meio ambiente, etc.), também objetivam cumprir rigorsosamente a legislação trabalhista e proporcionar melhores condições de trabalho aos seus empregados. Essas práticas de cidadania corporativa1 têm sido cada vez mais consideradas pelos investidores na escolha das empresas das quais comprarão ações.

Este trabalho objetiva identificar as principais transformações ocorridas nas relações de trabalho em decorrência do modo de produção globalizado e iniciar uma análise jurídica de como essas relações laborais estão sendo enxergadas pelos novos capitalistas (acionistas-cidadãos) e em que medida o ativismo acionário pode servir de mecanismo de melhoria das condições de trabalho.

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1. As relações de trabalho no sistema capitalista

As principais causas da crise do emprego no capitalismo contemporâneo são, em regra, analisadas apenas quanto às variáveis endógenas do mercado de trabalho (normas trabalhistas, previdenciárias, acordos sindicais, etc.), não sendo consideradas as variáveis exógenas (baixa qualificação profissional, ausência de políticas reguladoras, automação, globalização, concorrência desregulada, etc.).

Este estudo terá como foco as variáveis exógenas, que, em muito, influenciam e direcionam a elaboração e execução das normas e políticas públicas voltadas às questões trabalhistas. Iniciar-se-á pela descrição do modo de produção globalizado.

1.1. Os modos de produção globalizados

Os antigos modelos de produção taylorista e fordista2 prevalecentes no início do século XX, fase de expansão da atividade industrial, que objetivavam o aumento da produção e se destacavam pela valorização do tamanho da empresa (the big is beautiful — versão: quanto maior, melhor), foram substituídos pelo toyotismo3, novo modelo

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de organização de produção, cujas principais características são a produção vinculada à demanda, ao contrário da produção em massa; o trabalho operário em equipe, com pluralidade de funções, processo produtivo flexível, que possibilita ao operário manusear simultaneamente várias máquinas; presença do just in time4 (melhor aproveitamento do tempo de produção); estoques mínimos; senhas de comando para reposição de peças e estoque; estrutura horizontalizada — apenas 25% (vinte e cinco por cento) da produção é realizada pela própria empresa, o restante é realizado por empresas terceirizadas; organização de círculos de controle de qualidade, compostos pelos empregados, que são instigados a melhorar seu trabalho e desempenho.

O fracionamento das cadeias produtivas dá-se tanto pela divisão das etapas produtivas por diferentes empresas, como pela distribuição das atividades por uma mesma empresa, em locais (cidades, estados e países) distintos5. Empresas multinacionais, objetivando maiores lucros, instalam suas fábricas em países menos rigorosos com a imposição e fiscalização de direitos sociais.

A trasnacionalização da produção e do consumo acirra o alto nível de competitividade empresarial, estimulando a necessidade de redução de empregos e de despesas com encargos sociais6. Nesse quadro,

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verifica-se a crescente “reestruturação das empresas, em que são realizadas medidas direcionadas à redução dos empregos, por meio da adoção de programas de reengenharia, de reorganização do trabalho e da produção (POCHMANN, 2006, p. 71).

Nesse contexto fragmentado da produção, os sindicatos profissionais têm sua capacidade de negociação sensivelmente prejudicada, pois há redução do número de trabalhadores pertencentes à categoria (proliferação de várias categorias de trabalhadores), o que favorece a continuidade da fragilização das relações de trabalho.

1.2. O Estado mínimo

Os modos de produção globalizados solidificam-se com a abertura proporcionada pelo modelo de Estado não intervencionista, ou seja, aquele em que há o mínimo possível de interferência estatal nas atividades econômicas, sem a existência de normas sociais e ambientais rígidas que sirvam de obstáculo aos empreendimentos comerciais e financeiros.

Por outro lado, observa-se que o Estado mínimo não vem sendo óbice ao aumento do desemprego e à precarização das ocupações. Márcio Pochmann cita o exemplo da economia inglesa no século XIX em que o Estado pouco intervinha e as taxas de desemprego eram expressivas (2002, p. 23).

Tal modelo de Estado, sob a justificativa de ter por finalidade o impulso ao desenvolvimento econômico, não vem considerando as crescentes mazelas sociais, se é que é possível distinguir tais problemáticas7.

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2. O ordenamento jurídico brasileiro e a realidade econômica internacional

São objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, da Constituição da República de 1988). No entanto, o mercado internacional desqualifica o sistema de proteção social brasileiro, denominando-o Custo Brasil, que se exterioriza na folha de pagamento das empresas e na política tributária.

Passa-se à análise da colisão entre as vontades do Estado brasileiro e as vontades do mercado.

2.1. A ordem econômica nacional

A atual Constituição adotou o sistema de produção capitalista para reger as atividades econômicas no país. Assegura-se a proprie-dade privada (art. 170, II), bem como a livre iniciativa (art. 170, caput).

Quanto ao modelo econômico vigente na Constituição, são predominantes as características do modelo planificado, pois foram previamente estabelecidos os princípios e regras à luz dos quais deve ser desenvolvida a ordem econômica nacional. Trata-se do planejamento das políticas econômicas, as quais devem se harmonizar com os fins do Estado Brasileiro.

Muito embora a Constituição dite normas que objetivam direcionar políticas econômicas e sociais, o mercado nem sempre assimila essas diretrizes. Tal conflito fático-normativo será abordado neste capítulo, enfatizando-se os dois fundamentos da ordem econômica brasileira: o valor social do trabalho e a livre iniciativa.

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2.1.1. Valor social do trabalho

Ao estatuir o valor social do trabalho como fundamento da ordem econômica, o Constituinte indicou um norte para a elaboração e execução de políticas públicas: o fomento do direito ao trabalho. Frise-se que a leitura constitucional deve ser voltada também para os aspectos qualitativos da relação de trabalho e não apenas para os aspectos patrimoniais. Logo, é evidenciado o direito ao trabalho de boa qualidade8.

Na análise do trabalho no âmbito da atividade econômica, destaca Fabiano Del Masso a...

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