A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica

AutorGianpaolo Poggio Smanio
CargoPromotor de Justiça da Cidadania de São Paulo
Páginas14-17

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A presença dos crimes econômicos e ambientais em nossa sociedade, com a participação cada vez maior das empresas para sua efetivação, o crescimento econômico, a globalização, que acarreta uma verdadeira desnacionalização, e, principalmente, a despersonalização dos fenômenos relativos às pessoas jurídicas provocaram a discussão mundial sobre a necessidade de sua responsabilização penal.

Esse tema é um dos mais relevantes e polêmicos da atualidade do Direito Penal, sendo abordado de diversas formas pela doutrina. Dividimos as posições doutrinárias em três: a daqueles que não aceitam a responsabilização penal das pessoas jurídicas, a dos que apenas concordam com a aplicação de medidas especiais e a daqueles que admitem a responsabilização penal.

1. O princípio societas delinquere non potest

O Direito romano1

não admitia a responsabilização penal da pessoa jurídica, cunhando a expressão suprareferida, um dos alicerces do Direito Penal clássico.

No final do século XVIII, foi imposta a Teoria da Ficção de Feuerbach e Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual a pessoa jurídica é uma criação artificial da lei e, como tal, não pode ser objeto de autêntica responsabilidade penal, que somente pode recair sobre os reais responsáveis pelo delito, os homens por trás das pessoas jurídicas. Esse pensamento ainda é adotado nos dias de hoje por ampla doutrina.

Os dois principais fundamentos para não reconhecer a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica são a falta de capacidade de ação e de culpabilidade.

A doutrina contrária à responsabilização penal desdobra os principais argumentos, apontando o princípio da personalidade das penas, ou seja, somente é punível quem executou materialmente o ato criminoso, ou o princípio da individualidade da responsabilidade criminal, para o qual a responsabilidade criminal recai exclusiva e individualmente sobre os autores das infrações, ou, ainda, o princípio da intransmissibilidade da pena e da culpa, para o qual as penas não deverão ultrapassar, em nenhum caso, da pessoa que praticou a conduta, como barreiras insuperáveis para a criminalização dos entes coletivos.

Na doutrina alemã, Hans-Heinrich Jescheck entende, nesse sentido:

(...) las personas jurídicas y las asociaciones sin personalidad únicamente pueden actuar a través de sus órganos, por lo que ellas mismas no pueden ser penadas. Además, respecto a ellas carece de sentido la desaprobación éticosocial que subyace en la pena, pues sólo contra personas individuales responsables cabe formular un reproche de culpabilidad, y no contra los miembros del grupo no participantes, o contra una masa patrimonial2.

Igualmente, Claus Roxin declara:

Tampoco son acciones conforme al Derecho Penal alemán los actos de personas jurídicas, pues, dado que les falta una sustancia psíquico-espiritual, no pueden manifestarse a sí mismas. Sólo "órganos" humanos pueden actuar con eficacia para ellas, pero entonces hay que penar a aquéllos y no a la persona jurídica3.

Na doutrina italiana, Antonio Pagliaro:

Anziché parlare di condotta della persona giuridica, basta considerare la condotta della persona fisica che funge da suo organo (es.: amministratore di società). É sempre una persona fisica, anche se qualificata da uno certo rapporto com lénte, a porre la condotta illecita.

In questo senso può dirsi che le persone giuridiche non sono idonee a compiere una condotta penalmente illecita4.

No Direito brasileiro, René Ariel Dotti afirma:

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"No sistema jurídico positivo brasileiro, a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente, às pessoas físicas. Os crimes ou delitos e as contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos5".

No mesmo sentido, Oswaldo Henrique Duek Marques:

"As sanções impostas aos entes coletivos, previstas na nova legislação, não podem ter outra natureza senão a civil ou a administrativa, porquanto a responsabilidade desses entes decorre da manifestação de vontade de seus representantes legais ou contratuais. Somente a estes poderá ser imputada a prática de infrações penais6".

2. A responsabilização da pessoa jurídica por meio de medidas especiais

A irresponsabilidade penal da pessoa jurídica encontra outra vertente doutrinária que entende ser necessária uma criação intermediária entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal, para neutralizar a periculosidade que determinadas pessoas jurídicas podem trazer para o sistema social.

Essa posição defende a adoção de medidas preventivas especiais integrantes de um:

Direito de Intervenção, que seria um meio-termo entre Direito Penal e Direito Administrativo, que não aplique as pesadas sanções de Direito Penal, especialmente a pena privativa de liberdade, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional, para combater a criminalidade coletiva (...)7.

As medidas especiais aplicadas às pessoas jurídicas diferem das medidas de segurança, empregadas quando o sujeito manifesta periculosidade criminal, ou seja, o potencial para cometer fatos considerados delituosos, embora não tenha a capacidade penal para responder penalmente por eles.

Para os defensores dessa visão, a pessoa jurídica não tem capacidade para praticar crime e, portanto, não pode oferecer periculosidade criminal, não sendo cabível em relação a ela a aplicação de medida de segurança.

O Direito de Intervenção para as pessoas jurídicas é visto no Direito português como Direito de mera ordenação social, situado entre o Direito Penal e o Direito Civil, em que são possíveis as aplicações de sanções como a multa, por exemplo, mas sem implicar sanção penal.

João Castro e Souza, analisando a questão, defende: "(...) situando-se, porém, o Direito Civil e o Direito de mera ordenação social no âmbito do eticamente indiferente, compreende-se que a violação das suas normas possa ser levada a cabo, tanto por pessoas singulares, como colectivas, pelo que se lhes poderá reconhecer capacidade de acção nestes domínios e negar-lha no direito criminal8".

Santiago Mir Puig9, por sua vez, defende que as medidas especiais a serem aplicadas às pessoas jurídicas podem ser: a dissolução da entidade, a mera intervenção na empresa, o fechamento desta, a suspensão de suas atividades ou a proibição de realizá-las no futuro.

Reputamos que as medidas especiais, de caráter ordenatório, administrativo ou civil, podem ser utilizadas para a prevenção dos ilícitos praticados pelas pessoas jurídicas, mas são insuficientes para responder à realidade criminal econômica e ambiental de nossos dias, devendo ser aplicadas juntamente com medidas de caráter penal, fazendo parte de um sistema jurídico-penal novo, apto a atuar de forma eficaz no combate à criminalidade contemporânea, à lavagem...

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