A disciplina da responsabilidade objetiva nas relações de consumo: prevalência das normas do código de defesa do consumidor sobre as do Código Civil

AutorGabriel da Rocha
Páginas227-239

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1. Introdução

Dentre as novidades introduzidas pelo atual Código Civil em relação às regras do revogado Código Civil de 1916, a responsabilidade objetiva assumiu papel de destaque, sendo objeto de intenso debate na doutrina e na jurisprudência. Em parte, isto se deve às incertezas da sua aplicação, tendo em vista a relativa indeterminação das hipóteses normativas do art. 927, parágrafo único, e do art. 931 do Código Civil.

Uma das discussões travadas diz respeito à incidência das normas do Código Civil a situações já reguladas por leis especiais, mais especificamente, para os propósitos deste estudo, às relações de consumo. Embora os arts. 927, parágrafo único, e 931 do Código Civil contenham ressalvas expressas quanto à sua aplicação àquelas hipóteses, há casos em que isto vem sendo feito em conjunto ou mesmo isoladamente com as normas próprias do Código de Defesa do Consumidor.

O objetivo deste estudo, portanto, é o de analisar se é correta a prevalência de tais normas gerais em detrimento das normas próprias do Código de Defesa do Consumidor, na regência de casos de indeniza-ção por acidentes de consumo, tendo-se em vista os campos de incidência das normas de ambos os Códigos, bem como os critérios para sua interpretação.

2. Considerações preliminares

A positivação da responsabilidade civil objetiva não é novidade em nosso ordenamento jurídico, pois esta já havia sido introduzida por intermédio de leis especiais - voltadas à disciplina de certos casos específicos, tais como atividades nucleares, atividades degradantes do meio ambiente - e pela Constituição Federal, que consagrou a responsabilidade objetiva do

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Estado e das pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos pelos atos de seus agentes,1 no art. 37, § 6°.

Maior destaque, no entanto, merece a Lei 8.078/1990 - Código de Defesa do Consumidor -, que não somente criou as figuras jurídicas do consumidor e do fornecedor, de produtos ou serviços, mas também afastou a necessidade de verificar a culpa deste último para que reste configurado o dever de indenizar. Na verdade, o Código de Defesa do Consumidor fez mais, estendendo a aplicação de suas normas a todas as pessoas diretamente vitimadas por acidentes de consumo, mesmo que não se tratem de consumidores em sentido estrito, por não terem adquirido o produto ou serviço.2

Portanto, antes do atual Código Civil introduzir cláusulas gerais de responsabilidade civil objetiva, aplicáveis aos danos relacionados ao exercício de atividades de risco e àqueles decorrentes de fato do produto, respectivamente disciplinadas pelos arts. 927, parágrafo único,3 e 931,4 já havia vasta gama de situações regidas pela sistemática da responsabilidade objetiva.

A rigor, tais normas gerais do Código Civil têm, de antemão, seu campo de aplicação restrito aos casos não disciplinados por leis especiais, conforme expressamente ressalvado em suas respectivas hipóteses normativas. Trata-se de disposições, de resto, congruentes com a conhecida regra de solução de conflitos de normas: lexposteriori generali non derogat priori spe-ciali.5

Apesar disto, há julgados aplicando cumulativa ou isoladamente os preceitos da lei geral às relações de consumo que, a princípio, deveriam ser regidas unicamente pelo Código de Defesa do Consumidor.

Confiram-se excertos de alguns desses julgados:

"Ação de indenização - Instituição financeira - Fraude - Operações bancárias via internet - Relação de consumo - Falha na prestação do serviço - Danos morais -Configuração - Quantum. A responsabilidade do fornecedor, em decorrência de falha na prestação do serviço, é objetiva, nos exatos termos do art. 14 do CDC, bem como do art. 927, parágrafo único, do CC/2002. O valor da reparação não deve constituir enriquecimento sem causa, mas deverá ser desestímulo à repetição da conduta danosa. Recurso não provido."6

"(...). Como advento do Código Civil de 2002, os arts. 12 e 18 a 25 do CDC foram reforçados de maneira significativa, uma vez que o parágrafo único do art. 927, e o art. 931, ambos do Código Civil, confirmaram a tendência do Código Consu-merista de ampliar a responsabilização de empresários e empresas, no tocante aos danos causados aos consumidores, como se vê: 'Art. 927. (...). Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem'. 'Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos

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causados pelos produtos postos em circulação.'"7

"Civil. Consumidor. Responsabilidade civil. Manutenção indevida nos cadastros de devedores. Dívida prescrita. Ato ilícito configurado. Obrigação do responsável de retirar o nome após período de prescrição do art. 43, § 1o, do CDC. Culpa. Inércia e negligência configuradas. Precedentes jurisprudenciais. Constrangimentos ocorridos. Dano moral in re ipsa. Configuração. Dano moral configurado. Matéria pacificada. quantum fixado moderadamente. LA constatação da manutenção indevida do nome do recorrido nos cadastros de proteção ao crédito é ato ilícito que dá ensejo a reparações por danos morais, já que configura negligência de sua parte no cumprimento de dever legal de promover a imediata retirada no órgão competente, como determina a lei consumerista e, como tal a gerar dano moral, consoante dispõe os arts. 186,187 e 927, caput, e parágrafo único e art. 7o, parágrafo único c/c arts. 14 e 34, do CDC - Lei n. 8.078/1990. 2. A responsabilidade in casu, nos termos do art. 14, do CDC, é objetiva, decorrente da simples colocação no mercado de determinado serviço ou produto (...)."8

Esses julgados não justificam o porquê da aplicação das normas gerais em conjunto com as normas especiais do Código de Defesa do Consumidor para disciplinar a responsabilidade por fatos do produto ou serviço, em relações de consumo ou equiparadas.9 Menos ainda, o porquê da aplicação isolada da norma geral do art. 927, parágrafo único, contrariamente ao que dispõe sua própria hipótese normativa.

Na doutrina, a utilização das normas gerais de responsabilidade civil objetiva para reger hipóteses de consumo é igual-mente aventada. O fundamento invocado é de que o art. 7°, caput, do Código de Defesa do Consumidor, é uma norma de abertura, permitindo que se busquem normas que melhor protejam o consumidor, mesmo fora do microssistema criado por aquele Código.

Nesse sentido, assevera Cláudia Lima Marques que:

"Observando-se o texto do art. 7o do CDC conclui-se que representa uma cláusula de abertura, uma interface com o sistema maior: os direitos do consumidor podem estar em outras leis e não só no CDC. Funcionalmente, ou pela teleologia do próprio CDC e da Constituição Federal há que se utilizar a norma mais favorável aos direitos do consumidor. Sendo assim, parece-me que o CC/2002 traz também novos direitos aos consumidores. Também suas cláusulas gerais, de responsabilidade sem culpa pela atividade de risco (art. 927, parágrafo único), responsabilidade sem culpa das empresas e empresários individuais pelo fato do produto (art. 931), (...) poderão complementar a aplicação do CDC ou mesmo superá-la se forem mais favoráveis aos consumidores (imagino, por exemplo, o caso de prescrição da ação ou de exclu-dente específica do CDC, que não esteja presente no sistema geral do CC/2002 e uso, pois do CC/2002 como lei mais favorável)."10

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Essa doutrina não explicita, contudo, os motivos pelos quais se poderia atribuir às normas gerais atributos de maior prote-ção ao consumidor e ao consumidor equiparado (bystander) do que os existentes nas normas do Código de Defesa do Consumidor. Aparentemente, tal entendimento decorre do fato dos arts. 927, parágrafo único, e 931, do Código Civil não conterem previsões expressas de excludentes de responsabilidade, dentre as quais a exigência de defeito no produto ou na atividade desenvolvida, tal qual fazem os arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor.11

Aceitar esse entendimento, no entanto, equivale a dizer que o Código Civil inaugurou no ordenamento jurídico nacional cláusulas gerais de responsabilidade objetiva por risco integral.12 Isto representaria a exclusão do sistema jurídico dos arts. 14 e 12 do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que se trata de normas com campos de aplicação respectivamente superpostos aos dos arts. 927, parágrafo único, e 931, do Código Civil, gerando uma revogação tácita da norma especial anterior pela norma geral posterior.

3. O art 7o, caput, do CDC: requisitos e limites para sua aplicação

Como se expôs, o fundamento de direito positivo, invocado para a aplicação, cumulada ou isolada, das normas gerais de responsabilidade objetiva do Código Civil na disciplina das relações de consumo, é o art. 7o, caput, do Código de Defesa do Consumidor. Confira-se o que dispõe o citado artigo:

"Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade."

O raciocínio seguido pelos que...

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