Responsabilidade dos signatários de acordo de voto no regime da Lei n. 10.303/01

AutorFelipe de Freitas Ramos
Páginas114-128

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1. Introdução

A expressa regulamentação legal dos acordos de acionistas no direito brasileiro, introduzida por meio da Lei 6.404/76 representou, naquela ocasião, uma verdadeira ex-ceção dentre as demais legislações cujos ordenamentos jurídicos sofreram substancial influência do direito romano.1 Esta ten-dência foi posteriormente seguida por vários outros países.2

Se a expressa regulamentação objeti-vava, essencialmente, diminuir as controvérsias acerca de tal figura jurídica, com toda segurança seria possível afirmar que não poucos foram os casos em que a prestação jurisdicional do Estado foi requerida com o objetivo de solucionar divergências entre seus signatários, e, em algumas situações, entre estes e a própria companhia.

Muito embora os acordos de acionistas - quando celebrados com a estrita observância do disposto no art. 104 do Código Civil Brasileiro,3 e observadas as limi-

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tacões impostas pela própria lei societária4 - gerem obrigações e direitos entre os contratantes (conventio legis contractus), frequentemente, convenentes de má-fé se valem de artifícios ardilosos com o objetivo de se absterem de adimplir as obrigações pactuadas, violando o pacta sunt servanda.

A invocação do princípio societário da prevalência do interesse social sobre o interesse dos sócios, comando legal expressado no art. 115 da Lei 6.404/76,5 passou a ser, reiteradamente, arguido para fundamentar tal inadimplemento.

Dentre as matérias elencadas passíveis de regulação por acordo de acionistas, previstas na Lei, as questões relativas à chamada "governança corporativa" têm ocupado relevante destaque. E de forma diversa não poderia deixar de ser, uma vez que as disposições relativas ao poder de voto produzem efeitos que se irradiam para fora da esfera particular dos contratantes, atingindo incisivamente a própria companhia.

No âmbito institucional, a insegurança quanto à aplicabilidade das disposições contratuais produzem um preocupante quadro de incertezas quanto aos rumos das ati-vidades da companhia, o que acaba por influenciar, de forma determinante, a decisão de possíveis investidores em aportar recursos nesta. Dentre os elementos que constróem a imagem da companhia junto ao mercado, o relacionamento intersócios ocupa papel fundamental, não podendo, assim, a empresa ser condenada à "ditadura dos irresponsáveis".

Atentando para tal questão, a lei societária possibilitou, nos termos do art. 118, § 39, que as obrigações estabelecidas no referido contrato fossem passíveis de execução específica.

Malgrado a relevância de tal previsão legal, que veio a representar importante instrumento para o cumprimento das obrigações assumidas, em algumas situações a execução específica mostrou-se insuficiente para o atendimento oportuno dos interesses da companhia e de seus acionistas. A morosidade da Justiça faz da via judicial, na imensa maioria dos casos, a mais lenta forma de satisfação dos interesses.

Sob a ótica da empresa, as frequentes guerras de liminares travadas entre seus acionistas só vêm a obstar as atividades da companhia, contribuindo, de forma contundente, para a ocorrência de consideráveis prejuízos àquela.

Nesse sentido, objetivando assegurar maior segurança jurídica aos subscritores de acordo de voto, e, como consequência, evitando prejuízos à própria companhia e aos pactuantes, o legislador inovou ao adicionar ao art. 118 da Lei 6.404/76, por intermédio da Lei 10.303/01, dentre outros, os §§ 89 e 99, os quais passamos a transcrever:

"§ 8°. O presidente da assembleia ou do órgão colegiado de deliberação da companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado.

"§ 9°. O não comparecimento à assembleia ou às reuniões dos órgãos de administração da companhia, bem como as abstenções de voto de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conselho de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada."

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Tais dispositivos nada mais fazem do que evidenciar a intenção do legislador em tornar mais coercitivo o cumprimento das disposições firmadas em acordo de voto, seja no âmbito das assembleias gerais, seja em reuniões de órgãos colegiados, notada-mente, no conselho de administração.

Por força do § 8g acima transcrito, resta ao presidente de assembleia geral (ou do órgão colegiado), não uma faculdade, mas sim o dever legal de não computar voto que não esteja em consonância com as disposições firmadas em acordo de acionistas, desde que devidamente arquivado na sede da companhia.

Segundo Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik,6 o § 99 do art. 118 da Lei das S.A. representa uma prerrogativa legal que garante ao signatário prejudicado, através de mecanismo similar ao exercício da auto-tutela, a defesa e garantia dos termos pactuados no acordo: "O § 99, por sua vez, estabelece um mecanismo de auto-execução específica do acordo de acionistas, distinto da execução judicial já prevista na lei e que se dá por meio do voto da parte signatária prejudicada em substituição à ausência ou à abstenção de voto de qualquer signatário do acordo ou de seu representante no conselho de administração. Tal mecanismo funda-se no princípio da autotutela, por meio do qual assegura-se aos particulares, em situações bastante singulares e previstas em lei, o direito de agir direta e suficientemente, ou seja, sem a intervenção judicial, suprindo, no presente caso, a ausência ou a omissão de algum signatário do acordo ou de um conselheiro para, assim, obter o integral cumprimento do que foi decidido na reunião prévia".

Entendemos que, muito embora a solução adotada pelo § 99 assemelhe-se à autodefesa, não poderíamos assim classificá-la, uma vez que a autodefesa (ou auto-tute-la) é exercida em nome próprio, e jamais em nome de terceiro.7 Ocorrendo odescum-primento do acordo de voto, ao acionista prejudicado é outorgado o direito de votar com as ações do inadimplente. Logo, estará aquele votando em nome do signatário descumpridor, como se este último fosse.

Relevante ressaltar, ainda que sucintamente, que as inovações insurgidas pelo art. 118, §§ 89 e 99, da Lei 10.303/01, não se esgotam no âmbito da maior coercibili-dade das obrigações contratuais celebradas. A expressa vinculação legal dos demais órgãos colegiados, em especial do conselho de administração, às disposições dos acordos de acionistas - eterna discussão que atormentava e dividia a doutrina - representa, em nosso entendimento, fundamental avanço para o exercício da boa governança corporativa.

Juntamente com as inovações decorrentes da reforma em comento, mais precisamente, no que se refere à auto-execução específica conferida aos acordos de acionistas, surge o questionamento sobre a quem competiria a responsabilidade pelo voto proferido pelo acionista prejudicado, nos termos do § 99 supracitado, em caso de conflito com o interesse social. Caberia ao acionista inadimplente ou ao acionista prejudicado que votou com as ações daquele, em consonância com o texto legal, o dever de reparar o dano causado à companhia?

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Lembramos que a responsabilização dos signatários de acordo de voto, pela ocorrência de prática prevista no art. 115 não é fruto da recente alteração promovida pela Lei 10.303/01. O art. 118, § 29, que assim dispõe, está presente desde a vigência da Lei 6.404/76.

Entretanto, tal questão tomou relevante contorno e importância após a recente reforma, uma vez que esta veio a permitir a auto-execução dos acordos de voto, vis a vis os novos §§ 89 e 99 do art. 118.

2. Do conflito de interesses

O pêndulo da abordagem do presente trabalho assenta na ideia do conflito de interesses. Sobre a relação entre o interesse social e o interesse dos acionistas, faremos breves comentários, uma vez que tal aspecto já foi, de forma exaustiva e apropriada, objeto de longo e profundo estudo pela mais consagrada doutrina.

Nesse passo, podemos dizer que o interesse social é representado pelo interesse comum dos acionistas, não havendo, a priori, uma distinção completa entre o interesse social e o interesse dos acionistas.

Assim, o voto proferido atendendo aos interesses do universo acionário, da companhia, e mesmo da comunidade em que exerce suas atividades, cumprindo, assim, sua função social, levaria a companhia a realizar sua finalidade. Desta forma, o interesse comum dos acionistas (uti singuli) estaria absolutamente alinhado ao interesse social (uti socii).

Sobre o tema, vejamos o que diz Luiz Gastão Paes de Barros Leães: "Prescreve o art. 115, caput, da Lei 6.404/76, que o acio-nista deve exercer o direito de voto no interesse da companhia - entendendo-se o interesse da companhia, não como o somatório dos interesses privados dos sócios, nem como um interesse autónomo desvinculado dos interesses dos acionistas da companhia, mas como o interesse comum dos sócios (qua socci e não enquanto indiví-duos), norteado no sentido da realização do objeto social".8

No sentido inverso, podem acontecer situações em que o exercício do direito de voto, visando a atender ao interesse uti singuli, se dê em detrimento do interesse uti socii, situação na qual o interesse particular do acionista não estaria em conformidade com o interesse social.

É neste sentido que ensina o mestre Tullio Ascarelli: "O voto é...

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