Responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais e convivenciais

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas119-137

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Introdução

O Direito dos Danos e o Direito de Família são dois ramos do Direito Civil intensamente marcados por polêmicas e pela mutabilidade. Teses e antíteses surgem em doutrina e jurisprudência, proporcionando aos estudiosos e, não é exagero dizer, aos destinatários da norma, a sensação de incerteza e insegurança, consequência dos dissensos que marcam essas duas searas do Direito Civil.

Maior complexidade surge quando se trata de assunto relacionado aos dois ramos: a responsabilidade civil por danos decorrentes da violação de deveres oriundos das relações de família. Doutrina e jurisprudência não tratam uniformemente o assunto e são frequentes os debates acerca de questões como a autos-

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suficiência ou não do Direito de Família para regulamentar as consequências do descumprimento dos deveres familiares.

A família encarada como instrumento de promoção dos interesses do homem, do pai de família, é fato histórico. Atualmente, está superada essa noção de família hierarquizada. O sistema jurídico pátrio concebe a família como locus privilegiado em que deve ser promovido o desenvolvimento físico, psíquico e social de todos os seus membros, seja ela constituída pelo matrimônio, pela união estável ou por ascendente e descendente.

A principiologia constitucional, não se restringindo à seara do Direito Público, aplica-se às relações privadas, entre as quais se destacam as de Direito de Família. A Constituição estabeleceu como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (CR/88, art. 1º, inc. III). Construir uma sociedade livre, justa e solidária é objetivo fundamental da República (CR/88, art. 3º, inc. I). A igualdade é direito fundamental do ser humano (CR/88, art. 5º, caput e inc. I). A família tem especial proteção do Estado (CR/88, art. 226, caput).

Diante dessa axiologia constitucional, o legislador ordinário estabeleceu deveres entre cônjuges, companheiros e parentes, no intuito de garantir um ambiente familiar propício a promover a dignidade de cada um dos membros da família, com espírito de igualdade e solidariedade. A legislação infraconstitucional disciplina as relações de família, impondo deveres a serem cumpridos por seus membros, visando a viabilizar o desenvolvimento do ser humano e a impedir as mais variadas situações de iniquidades que o cotidiano pode revelar. Nesse cenário, entre os temas que merecem destaque, além dos deveres dos pais em relação aos filhos (CC, arts. 1.634 e 1.689 e ss e diversos dispositivos do ECA), há os deveres recíprocos entre cônjuges (CC, art. 1.566) e entre companheiros (CC, art. 1.724), sendo que esses dois últimos tem nuanças bem distintas das daqueles primeiros, merecendo abordagem apartada deles, que é objeto do presente estudo.

A imposição de deveres aos membros da família não atingiria seus objetivos se não fossem estipuladas, para o caso de descumprimento, sanções eficazes e suficientemente inibidoras da conduta violadora.

É imperioso aferir se o descumprimento dos deveres conjugais ou convivenciais encontrará sanções tão somente na esfera do Direito de Família ou se é viável a responsabilização civil do descumpridor por danos patrimoniais ou extrapatrimoniais causados a seu consorte. Para tanto, é necessária uma análise das consequências previstas pelo Direito de Família para aferir se são suficientes e

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justas para sancionar adequadamente o violador dos deveres e se são satisfatoriamente dissuasórias.

1 Noções gerais sobre direitos e deveres conjugais e convivenciais

Os deveres conjugais e convivenciais, em grande medida, identificam-se com os deveres morais, assim considerados pelo senso comum.

Em razão de esses deveres muitas vezes terem conteúdo abstrato e imaterial, é necessária uma reflexão cuidadosa para aferir que tipo de conduta se pode exigir de cada consorte.

Na aferição do conteúdo dos deveres próprios das relações de família, como o de consideração entre os cônjuges (CC, art. 1.566, inc. V) ou o de lealdade entre companheiros (CC, art. 1.724), deve-se considerar que há uma gradação. Há um grau de probidade e correção que se pode esperar de cada membro da família. Quando se fala, por exemplo, em dever de consideração mútua entre os cônjuges, deve-se ter em mente que eles devem ter um pelo outro um razoável nível de consideração capaz de assegurar a harmonia necessária para a convivência e a prosperidade do relacionamento. Nesse mesmo sentido, não se cogita em lealdade ou deslealdade entre companheiros, mas em lealdade que se espera de um(a) companheiro(a), compatível com as expectativas de quem pretende manter um relacionamento próspero.

Convém observar que a verificação do descumprimento de deveres conjugais ou convivenciais deve se ater às circunstâncias de cada caso concreto. Não há um padrão de comportamento considerado como adimplente nos deveres. Não se estabelece, por exemplo, quanto tempo cada cônjuge pode se ausentar do lar sem dar satisfações ao outro. Deveras, não é viável que o legislador estabeleça exatamente como deve ser o comportamento humano nas relações familiares – e nas relações intersubjetivas em geral – em razão da autodeterminação do ser humano e da sua individualidade. Nem a axiologia constitucional permitiria tal ingerência. Assim, diante da necessidade de não estabelecer standards de comportamento humano, o legislador, por vezes, valeu-se de conceitos vagos, adaptáveis às peculiaridades de cada relação afetiva.

Dessa forma, o cumprimento (ou não) dos deveres conjugais ou convivenciais deve ser aferido levando-se em conta as peculiaridades de cada caso concreto,

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atentando-se para o meio social em que vive a família, a sua situação financeira, a cultura, os hábitos de seus membros etc. Somente após essa análise in concreto é que se poderá concluir se determinado comportamento terá sido compatível ou não com os deveres estabelecidos em lei. Isso vale especialmente em relação aos deveres descritos por conceitos vagos como o de respeito, consideração, educação dos filhos etc. Veja-se que determinado comportamento pode ser tido como desrespeitoso em determinado grupo social e, em outros, não. Certas atitudes podem ser consideradas exageradas em determinados meios sociais e, em outros, não. Comportamentos idênticos podem caracterizar descumprimento dos deveres familiares em determinadas situações e, em outras, não.

O padrão do homem médio, isto é, da pessoa razoavelmente sensata e proba, deve ser levado em conta na apreciação da conduta do indivíduo em relação a seu consorte. Mas é necessário considerar que esse padrão não será concebido de forma imutável em qualquer entidade familiar. Ou seja, não se pode esperar o mesmo comportamento de qualquer pessoa em qualquer tipo de família. Correto é levar em conta o que o homem médio faria estando envolvido em determinada circunstância familiar. Ou seja, não se impõe um comportamento padrão para todo e qualquer cônjuge ou companheiro(a). Impõe-se, sim, o padrão aceitável de comportamento a ser observado diante das circunstâncias que cercam cada relacionamento. Sendo assim, na apreciação do comportamento do cônjuge ou convivente, não se cogita em simplesmente compará-lo ao padrão do homem médio, mas, sim, com a conduta que se espera do homem médio envolvido nas circunstâncias do caso concreto. Por exemplo, o dever de vida em comum no domicílio conjugal (CC, art. 1.566, inc. II) não impõe a necessidade de permanência dos consortes no lar por determinado tempo, mas que eles lá estejam na medida do possível, mostrando-se presentes e oferecendo sua companhia ao outro por tempo que pode variar de acordo com os hábitos e a disponibilidade de cada um. Deveras, há inúmeras razões que podem suscitar o afastamento temporário do lar conjugal, como viagens a trabalho ou para tratamentos de saúde etc. Quem se afasta nessas condições não deve ser considerado violador do dever de vida em comum. Tais afastamentos são razoáveis e não indicam falta de sensatez ou de dedicação ao consorte, sendo compatíveis com o que se pode esperar do homem médio nas referidas circunstâncias. O mesmo não se diga daquele que reiteradamente se ausenta do lar em razão de viagens de lazer sem dar quaisquer satisfações ao outro consorte. Vê-se que o afastamento do lar pode, em deter-

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minadas circunstâncias, ser considerado atitude violadora do dever de vida em comum e, em outras, não.

Em síntese, o que se exige do sujeito para considerá-lo adimplente em seus deveres familiares é que se comporte de forma comedida, compatível com o que razoavelmente se pode esperar de uma pessoa sensata e proba que se encontre na mesma situação.

Há que se considerar, ainda, as limitações individuais de cada consorte, pois nem todos têm a mesma condição de manter determinado comportamento.

O critério é o mesmo que o da responsabilidade subjetiva em geral para aferição de culpa. Savatier já se opunha à ideia de adoção de um padrão invariável de comportamento (designado por bonus pater familias ou reasonable man), alertando para o fato de que não se pode esperar de todos a conduta própria do homem médio, tendo em vista que nem todos são homens médios, nos seguintes termos:

Pois homens diligentes e avisados violam, muito frequentemente, um dever legal, contratual ou moral. Um patife pode ser bastante prudente. E crê-se, diversas vezes, muito hábil em escapar voluntariamente a uma obrigação. O canalha que seduz uma moça, o homem de finanças que promove um negócio duvidoso, o comerciante que desvia deslealmente a clientela de outro, são geralmente pessoas hábeis e diligentes. Sua culpa é de haver dirigido esta habilidade à violação de um dever.2(Tradução...

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