Responsabilidade civil pelos danos à saúde do trabalhador decorrentes da exposição à fumaça do cigarro

AutorRaimundo Simão de Melo
CargoProcurador Regional do Trabalho. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP
Páginas29-48

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Introdução

O objetivo deste artigo é levantar algumas reflexões a respeito dos males causados aos trabalhadores expostos à fumaça do cigarro como fumantes passivos nos ambientes de trabalho, sobre as medidas preventivas a serem adotadas e analisar alguns aspectos da responsabilidade civil pelos danos decorrentes.

Tratar dos efeitos nocivos do tabaco para a saúde humana não é tarefa fácil, tendo em vista o grande aparato econômico e político que visa resguardar uma das mais rentáveis atividades econômicas mundiais, a taba-gista, especialmente nos Países em desenvolvimento, como o Brasil. Mais difícil ainda se torna a tarefa quando o enfoque se volta para a defesa da saúde do trabalhador, diante de dois grandes interesses econômicos: o do empregador e o da indústria tabagista.

1. Os efeitos nocivos da fumaça do tabaco para a saúde do trabalhador

Cientificamente, não existe mais qualquer dúvida sobre os efeitos nocivos do uso do tabaco para a saúde humana. Se o fumante ativo está sujeito a riscos para a sua saúde, igualmente ou pior, ocorre em relação àquele que recebe os efeitos da fumaça como fumante passivo. É o caso do trabalhador que não fuma, mas, durante a jornada de trabalho, fica exposto à fumaça de cigarro no ambiente de trabalho.

O fumo, como comprovado cientificamente, é a maior fonte de poluição em ambientes fechados, porque a fumaça emitida nos ambientes pela ponta do cigarro é cerca de quatro vezes mais tóxica do que a aspirada pelo fumante ativo. Pesquisa do instituto do câncer comprova que pelo menos sete pessoas morrem por dia no Brasil por conviverem com fumantes ativos.

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As doenças mais comuns pela exposição à fumaça do cigarro, cientificamente comprovadas, são: irritação nasal e ocular, exacerbação da asma, diversas doenças pulmonares, doenças cardiovasculares e câncer.

Em qualquer ambiente de trabalho, as pessoas podem estar expostas à fumaça do tabaco e aos seus males, sendo mais graves em alguns seguimentos de trabalho, como em bares, restaurantes, casas noturnas e outros similares. Nestes, quando fechados, os riscos para a saúde do trabalhador são acentuados.

De acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a fração de moléstias atribuídas ao fumo passivo é de 1,1% por doença crônica do pulmão, 4,5% por asma, 3,4% por doença do coração e 9,4% por acidente vascular cerebral, o que totaliza 14% de todas as mortes relacionadas ao trabalho causadas por doenças, sendo que a maioria das vítimas está em restaurantes, bares e setores de entretenimento e serviços1.

2. Direito a um ambiente de trabalho sadio e seguro

O Brasil conta com uma das mais avançadas legislações de proteção ao meio ambiente, tendo como principal objeto a defesa da vida.

A Lei n. 6.938/1981 foi um marco histórico sobre o tema, definindo meio ambiente como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3e, inc. I), o que está em harmonia com a Constituição Federal de 1988 que, no caputdo art. 225, buscou tutelar todos os aspectos do meio ambiente (natural, artificial, cultural e do trabalho), afirmando que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida".

No aspecto específico do meio ambiente do trabalho, a Carta constitucional brasileira estabeleceu como direito social fundamental dos trabalhadores um meio ambiente de trabalho sadio e seguro, como se infere do art. 7e e inc. XXII, in verbis:

São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:... XXII — redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

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Trata-se do mais importante direito do trabalhador, que busca a proteção da sua vida em razão do trabalho executado em prol de um tomador de serviços. Portanto, se todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225) e à saúde plena (CF, art. 196), diferentemente não pode ser em relação ao trabalhador, que move a economia do País e ajuda a criar a riqueza nacional.

3. O dever patronal de proteção da saúde do trabalhador

Se é direito do trabalhador a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, por outro lado, é do empregador a obrigação de implementar essas normas, porque é ele, como dono do negócio, quem assume os riscos da atividade desenvolvida (CLT, art. 2°).

Na CLT, consta de forma cristalina a obrigação patronal de preservação da saúde do trabalhador mediante o cumprimento das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, como estabelece o art. 157:

"Cabe às empresas:

I — cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

II — instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais;

III — adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente;

IV — facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente."

Desse modo, demonstrada a existência de dano para a saúde do trabalhador por conta dos riscos ambientais do trabalho, cabe ao empregador provar que cumpriu todas as suas obrigações na forma da lei. Caso não o faça, deverá arcar com as consequências reparatórias.

No caso do tabaco passivo no ambiente de trabalho, é ao empregador que compete permitir ou não que o trabalhador se exponha aos seus efeitos nocivos. O trabalhador fumante passivo, como se pode observar, nada tem a fazer, pois depende da atitude patronal permitir ou não que se fume nos locais de trabalho, devendo agir na forma da lei.

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É certo que o art. 2- e parágrafos da Lei Federal n. 9.294/1996 permitem fumar em ambientes fechados, nos chamados fumódromos, dizendo:

Art. 2e "É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente" (grifados).

§ 1e "Incluem-se nas disposições deste artigo as repartições públicas, os hospitais e postos de saúde, as salas de aula, as bibliotecas, os recintos de trabalho coletivo e as salas de teatro e cinema" (grifados).

§ 2- "É vedado o uso dos produtos mencionados no caput nas aeronaves e veículos de transporte coletivo".

Todavia, essa lei está desatualizada, pois é consenso científico que os fumódromos não atendem à proteção da saúde humana dos efeitos nocivos da fumaça do cigarro, como parece óbvio para qualquer leigo. Basta pensar, por exemplo, nos trabalhadores de bares e restaurantes, que têm como função servir os clientes, expostos aos efeitos do tabaco em locais fechados. O certo, como vêm adotando muitos países do mundo (por exemplo, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Canadá e Austrália), é a criação de ambientes fechados 100% livres do fumo.

Essa é linha adotada pela Convenção de Quadro para controle do tabaco, primeiro e importante tratado internacional de saúde pública aprovado por 167 Países na 56§ Assembleia Mundial da Saúde da OMS (Organização Mundaial da Saúde) em 2003 e aprovada e promulgada pelo Brasil, respectivamente, pelo Decreto Legislativo n. 1.012/2005 e Decreto n. 5.658/ 2006, integrando o ordenamento jurídico brasileiro como lei federal, como é consenso geral ou, para outros, como norma constitucional, diante do que dispõem os §§ 1e e 2e do art. 5e da Constituição Federal, por se tratar de tratado de direitos humanos, que tem aplicação imediata independentemente de norma interna e status de norma constitucional, como afirma Flávia Piovesan2 com apoio em Antonio Augusto Trindade Cançado3.

Neste caso, a Convenção de Quadro sobre o controle do tabaco veio alargar o universo dos direitos humanos sobre meio ambiente e saúde nacionalmente garantidos, não havendo qualquer conflito com a Constituição Federal, especialmente, no caso da proteção da saúde do trabalhador e do

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meio ambiente, com os arts. 7-, inc. XXII, 196 e 225. Igualmente não há incompatibilidade ou conflito com a Lei Federal n. 9.294/1996, que apenas foi complementada. De qualquer forma, mesmo que se queira arguir eventual incompatibilidade entre as duas normas, sustentando que a Convenção de Quadro tem força de lei infraconstitucional, é esta que deve prevalecer, porque lei posterior revoga a anterior com ela incompatível (§ 1e do art. 2e da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro). Ademais, no plano dos direitos fundamentais, aplica-se a norma mais favorável à vítima, titular do direito violado, porque aqui a primazia é a proteção da pessoa humana, pelo que, por qualquer ângulo que se veja a questão, a prevalência é da norma convencional, cujo art. 8e trata da proteção contra a exposição à fumaça do tabaco nos seguintes termos:

1 — "As Partes reconhecem que a ciência demonstrou de maneira inequívoca que a exposição à fumaça do tabaco causa morte, doença e incapacidade".

2 — "Cada Parte adotará e aplicará, em áreas de sua jurisdição nacional existente, e conforme determine a legislação nacional, medidas legislativas, executivas, administrativas e/ou outras medidas eficazes de proteção contra a exposição à fumaça do tabaco em locais fechados de trabalho, meios de transporte público, lugares públicos fechados e, se for o caso, outros lugares públicos, e promoverá ativamente a adoção e aplicação dessas medidas em outros níveis jurisdicionais".

Alguns Estados da Federação brasileira já se adequaram...

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