Responsabilidade civil na relação paterno - filial

AutorGiselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
CargoProfessora Doutora do Departamento de Direito Civil da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sócia fundadora e Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM
Páginas71-100

    Palestra proferida no III Congresso Brasileiro de Direito de Família - Família e Cidadania: o novo Código Civil Brasileiro e a 'vacatio legis', em 26.10.2001, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM e pela OAB/MG, na cidade de Ouro Preto (MG).


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1. Primeiras palavras

O enfrentamento do presente tema - que me foi especialmente deferido, neste conclave, pela conhecidíssima e eterna gentileza de nosso Presidente, o Dr. Rodrigo da Cunha Pereira - descortinou para mim, ao tempo em que me dediquei a imaginar como construir esta exposição, um panorama tão variado e rico, que não tenho hoje nenhuma dúvida de que se trata de mais um daqueles assuntos que não se esgotam, que não auto-desenham os seus próprios limites, mas, ao contrário, oferecem de modo contínuo e incessante, ao pesquisador, ao estudioso e ao operador do direito, um fabuloso manancial de aspectos que podem ser sempre e sempre percorridos, sem o risco do esgotamento da seiva profícua que o vivifica.1

Pessoalmente, na minha atividade acadêmica, tenho dedicado muita atenção e grande esforço de pesquisa à volta da temática da responsabilidade civil, mormente esta conhecida como indireta, da qual se diz ora ser uma responsabilidade subjetiva - por culpa presumida - ora se tende a dizer ser uma responsabilidade objetiva, por se lhe conferir cada vez menos o ônus probatório da culpa.2 Estou a me referir à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos seus filhos menores, conforme é a regra da Lei Civil que ainda vige, o Código de 1916, em seu art. 1521, especialmente.

Tem me sensibilizado, igualmente, nesta vertente da relação paterno- filial em conjugação com a responsabilidade, este viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.

Mas, dizia-lhes antes, o descortinamento do tema, conforme minha concepção, permitiu-me logo verificar que havia um estreitamento na temática que me fora presenteada, de sorte que a preocupaçãoPage 72 com a responsabilidade deveria cingir-se à civil e, sob este viés, deveria decorrer dos laços familiares que matizam a relação paterno-filial.

Ora, assim visualizado o tema, impôs-se, prontamente, para mim, esta idéia de que deveria tratá-lo sob as tintas da responsabilidade civil propriamente dita, costurando os conceitos - tão conhecidos, para mim e para tantos dos senhores - da urgência da reparação do dano, da re-harmonização patrimonial da vítima, do interesse jurídico desta, sempre prevalente, mesmo à face de circunstâncias danosas oriundas de atos dos juridicamente inimputáveis...

E não me satisfiz com esta idealização estrutural, já bem formatada na minha mente.

Pensei ainda mais e concluí que a insatisfação vinha de um fato muito simples: se íamos nos reunir em Congresso de Direito de Família, certamente a pujança do tema deveria - como o sadio ramo de trigo que se enverga ao ritmo do vento, mas não se quebra - inclinar-se para um outro lado e suscitar outra ordem de inquietações, além daquelas (importantíssimas igualmente, não resta dúvida) que se condensa na preocupação com a vítima - quer a vítima de danos produzidos por filhos menores e indenizáveis pelos seus pais, quer a vítima consolidada na pessoa do próprio filho, pela violação de seus direitos de personalidade, principalmente - na recuperação de sua normalidade patrimonial ou moral, como instrumento de superior categoria e valoração, endereçado à mantença da dignidade da pessoa humana.

Pensei então que seria adorável e certamente oportuno revirar os alicerces mais profundos do assunto para trazer à tona as inquietações, as dúvidas, as questões que nem sempre são do interesse imediato do direito, mas que são, indubitavelmente, a sua raiz mediata. Melhor de tudo, pensei, esta busca, ainda que significativamente difícil para mim, revelaria aquela nova maneira de se procurar desvendar e descrever o fenômeno jurídico a partir de sua interface com os fenômenos não-jurídicos que o antecedem.

Este é, senhores, o rico caminho da interdisciplinaridade, que admite - a um agrupamento de pessoas como este nosso de hoje, sob as dobras da diversidade de pensamento, de linhas e de construções científicas, dobras essas que caracterizam e personificam o IBDFAM - que nos sentemos uns ao lado dos demais, sociólogos,Page 73 antropólogos, psicólogos, filósofos e homens do direito. Sem castelos ou prisões. Sem moldes pré-estruturados e estratificados. Mas absolutamente abertos à contemplação da vida como ela é, e atentos aos contornos do caminho que leva à realização pessoal e plena de cada um dos homens, enquanto membro do grupo familiar que o abriga e guarda.

E a inquietação intrigante que se encontrava presa dentro de mim, emergiu e expandiu-se, desdobrando-se na mais singela das perguntas: Por que impõe-se - e repercute no Direito de Família - a responsabilidade advinda da relação paterno-filial?

Em que bases extra-jurídicas estariam assentadas as razões, as justificativas e os fundamentos da imposição de tal dever?

Poderia, acaso, a filosofia fornecer alguma base para a discussão da responsabilidade civil na relação paterno-filial?

Poderia, acaso, a psicologia adequadamente explicar qual o liame existente entre pais e filhos, que seja capaz de gerar e de justificar a concretude desta responsabilização, à face de terceiros, mas - e principalmente - à face deles próprios, um em ralação ao outro?

Sim, certamente sim, do mesmo modo como outros segmentos de apreciação e formulação do conhecimento humano, como a antropologia, como a sociologia, e como todas as demais persecuções científicas que tenham por objeto de interesse imediato o homem e sua circunstância relacional humana.

E assim, sob este desenho pré-jurídico, sob esse matiz fundante, sob esta inquietação acerca da raiz, decidi mudar o curso de minha apreciação, a qual lhes trago hoje, deixando-a sob suas mais que competentes considerações e críticas.

2. O arco filosófico da circunstância relacional humana entre pais e filhos

Levando o conceito de responsabilidade civil para suas bases mais longínquas, que o confundem com o termo genérico daPage 74 responsabilidade, e o dever clássico da prestação do devido, a filosofia, por exemplo, tem sim, muito que dizer.

Basicamente, ela tem muito que dizer sobre essa responsabilidade na relação entre pais - ou só o pai, ou só a mãe - e filhos, sempre que a idéia de família estiver presente ou for o centro das suas questões.

Há, a propósito, uma longa história do conceito de família na própria história da filosofia, além da história das instituições civis. E essa é uma história que vem desde os gregos - portanto, desde o início da filosofia ocidental - e que se confunde muitas vezes com a própria filosofia política, com o próprio pensamento em torno do direito e das sociedades.

Já de uma forma muito sofisticada, o tema da família aparece nessa ligação com a política justamente no pensamento político de Aristóteles, quando, em sua Política, apresenta uma explicação da pólis (cidade) como sendo uma associação de várias associações menores, das quais a originária é a família.

A cidade, antes de ser uma reunião de poderes, de instituições, de leis, é uma associação de famílias. Essa concepção aristotélica da cidade como uma reunião de famílias, célebre na história da filosofia política, não prosseguiu, todavia, com grande repercussão desde a Idade Média.

A partir do longo período medieval, a concepção da vida política se verá derivada, em especial, das próprias instituições e da presença efetiva de certos poderes ou autoridades, perdendo-se de certa forma a idéia grega de que a cidade é uma grande família. Mais do que isso, quer no período medieval, quer nos períodos subseqüentes (em especial naquele em que se desenvolve o jus-naturalismo moderno), será possível encontrar longas considerações jurídicas a respeito do que a família é ou deva ser.

Mas há algo na concepção aristotélica que é fundamental, que talvez não convenha esquecer, mesmo quando se desviar a atenção para as concepções mais modernas. Trata-se do seguinte, resumindo este aspecto: Por que a cidade é uma associação máxima que resulta da reunião de outras associações que resultam, por sua vez, da reunião de associações menores que são, enfim, as famílias? Porque, justamente, a família é uma associação natural humanaPage 75 (como a cidade, de certa forma, será de maneira mais complexa), onde as relações dentro dessa associação são naturalmente determinadas. O que permitiria, assim, conceber não só a família, não só a cidade, mas qualquer associação, é a sua condição de elo de ligações naturais.

Há, bem sabe e lembra Aristóteles, vários tipos diferentes de associações, e conseqüentemente vários tipos diferentes de cidades, de famílias e de comunidades de toda ordem. A conseqüência é que, se for o caso de tentar uma classificação dos tipos de cidade ou dos tipos de família, isso só será possível se for definido um critério para a tipologia.

Esse critério é buscado por...

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