Algumas considerações a respeito do corte no fornecimento de serviços públicos – aspectos materiais e processuais do tema

AutorJúlio César Ballerini Silva/Carolina Amâncio Togni Ballerini Silva
CargoMestre Em Processo Civil, Magistrado E Professor Universitário/Advogada

PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES INTERDISCIPLINARES

Não é desconhecido dos operadores do direito, de um modo geral, o fenômeno do esgotamento paradigmático do pensamento jurídico fundado a partir da premissa de um direito natural (concepção tomista que foi empregada por séculos pelos juristas como modo de pensar dogmaticamente o direito) que encontra inúmeras dificuldades de resolver os problemas decorrentes da complexidade das relações intersubjetivas, ainda mais em um mundo que prima pela celeridade decorrente dos próprios avanços tecnológicos num mundo globalizado, o que não pode ficar á margem do ordenamento jurídico (parece sintomático e óbvio que não se possa pretender resolver os problemas decorrentes do mundo moderno, verbi gratia, com contratações eletrônicas, por vetustos brocardos de direito romano canônico).

Ou seja, começa-se a compreender que não basta que o ordenamento jurídico passe a prever esta ou aquela conduta eis que fatores, mormente de índole econômica, que permitem a volatização do capital, em tempo recorde, acabam por influenciar de forma tão marcante a sociedade com eficácia muito maior do que a imposta por textos legais (por exemplos, não se desconhece que decisões legislativas tem levado, em muitos países, ao fechamento e à criação de fábricas, com muitos reflexos no que tange, por exemplo, a volume de empregos, geração de renda, qualidade de vida etc.).

Tanto assim que autores como Celso Lafer propugnam, como proposta inicial para a solução do problema referente ao hiato apontado, a adoção de um novo modelo paradigmático(1) (o referido autor propõe chamá-lo de paradigma da filosofia do direito, para permitir um “pensar” menos dogmático, mais aberto ao “perquerir” ou ao “questionar”, tomando, aliás, o dogma não como um fim em si mesmo (como se dava no modelo paradigmático positivista então dominante), mas, ao contrário, como um ponto de partida, como, ademais, vinha sendo sugerido por Tércio Sampaio Ferraz Jr.,(2) permitindo-se a interpretação que autorize abranger fatores interdisciplinares).

E isso se torna relevante na medida em que, igualmente, se tem por inegável que o Direito seja um fenômeno histórico, revestido de temporalidade e que, nos primórdios da civilização já tinha seu conteúdo intimamente ligado aos desígnios dos detentores do poder (verbi gratia, no Egito Antigo, no período conhecido por Antigo Império, ou seja, entre 2.664 a C e 2.155 a C, cunhou-se a expressão segundo a qual “o justo é o que o faraó ama, e o mal é aquilo que o faraó odeia”(3), não obstante a ponderação de que o justo e ético, para esse povo se confundia com a emblemática noção de maat(4)), reforçando-se o entendimento segundo o qual o direito implica numa evidente técnica de controle social (caráter igualmente destacado pelo já mencionado Tércio Sampaio)(5)

Essas concepções ligando o Direito ao poder se tornam uma questão de grande relevo posto que, em um mundo globalizado, em que o poder econômico se concentra pólos globalizantes opostos aos dos globalizados, se pode passar a questionar se fatores intimamente ligados ao poder não estão colocando em xeque a interpretação que se possa fazer do ordenamento jurídico como um todo (o que se tem revelado como óbvio numa concepção geopolítica).

Tal discussão se torna muito evidente e atual, num mundo em que as informações e a tecnologia são difundidas de forma muito rápida, por veículos como a internet e a própria mídia, de um modo geral, observando-se uma crise de efetividade, outro fator de complexidade a ser sopesado (e, lamentavelmente, não se tem observado a preocupação das Faculdades de Direito em enfocar tais situações) em primeiro lugar, do ordenamento jurídico enquanto tal (como se pode entendê-lo como forma de controle social eis que o mesmo para ser alterado exige uma série de atos e formas dos poderes normativos, que demandam um tempo totalmente incompatível com as mudanças sociais, e, sobretudo, econômicas ?), o que vem acompanhado da crise instrumental (se o ordenamento estabelece direitos, em caso de violações a esses direitos tem-se o direito de ação para o devido restabelecimento da situação, o qual, como é cediço, repousa num instrumental processual para que possa ser exercitado), o que nos conduz a um terceiro evento, qual seja, o da crise do Poder Judiciário (ente institucional que tem por função precípua o exercício da jurisdição, ou jurisdicere, poder de “dizer o direito”, de forma imparcial).

Aliás, autores como Montesquieu(6) explicam, sob um prisma histórico, que o Poder Judiciário se revela como um poder criado para suportar os desgastes das mazelas do poder, esclarecendo de forma simples, que se cuida de um poder criado para evitar o desgaste do soberano nas questões políticas polêmicas (pondera no sentido de que o poder de dizer o que é certo e o que é errado dentro de um Estado se revela como o maior poder de um Estado, posto que, quem o detém, pode-se dizer sempre como correto).

Assim, verifica-se que somente fatores muito candentes teriam levado os detentores do poder a não concentrar tal poder para si (resta como tentador dizer-se sempre certo, nunca estando errado) e isso se revela no fato de que, psicologicamente, ninguém gosta de estar errado (as pessoas dificilmente aceitam que lhes digam que estão erradas, optando por acreditar que foram vítimas de injustiça num julgamento a reconhecer as próprias falhas), o que significa que não se revela como raro que o julgador acabe por sempre se indispor com um dos pólos da relação (quando não com ambos), o que explica que a função de dizer o certo e o errado seja extremamente desgastante para quem a detém.

Daí a necessidade do soberano de atribuir a um terceiro tal função, para que este se desgaste politicamente com o fato de tal ou qual decisão, revelando a importância da liberdade do Julgador, que deve ser independente para tal mister, sob pena de se convolar em mero repetidor do soberano, isentando-o da responsabilidade política por seus atos.

Tais variáveis são postas em conflito, de forma candente, na questão que se delineia no presente momento, com a discussão das ações versando sobre a possibilidade de corte no fornecimento de serviços, em regime de concessão, que impliquem em relações de consumo, quando se verificar a mora do consumidor hipossuficiente (até porque normalmente são invocadas antinomias aparentes de normas, com regimes jurídicos diversos, como se exporá adiante), o que se tem se verificado num sem número de demandas análogas versando sobre tal tema, que tem abarrotado os fóruns do país (como se verifica, aliás, de forma sintomática, pela análise do grande número de Julgados sobre o assunto).

O DESAFIO DA COMPLEXIDADE CRISE DO PODER JUDICIÁRIO E TEMPESTIVIDADE DA JURISDIÇÃO

Como é de conhecimento geral, tal questão passa pelo exame da necessidade de se conferir, não só uma eficácia formal aos atos processuais, mas, em verdade, o que se passa a buscar é algo mais amplo, ou seja, uma efetividade de tais atos processuais – o processo não é pode mais ser visto como um fim em si mesmo, devendo-se buscar a sua utilização como instrumento de consecução de algo maior, qual seja, o direito de ação, liberdade pública ou fundamental right, previsto na norma contida no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.

Ou seja, parte-se da constatação segundo a qual não basta que os atos de impulso oficial direcionem adequadamente (e de forma indefinida) um processo como fim em si mesmo, posto que isso poderia implicar numa forma jurisdicional de se negar a jurisdição (deve-se combater o assim denominado despacho protocolar ou burocrático que, muitas vezes, nada resolve em relação a quaisquer questões processuais).

Ao contrário, a partir do advento da Emenda Constitucional nº 45/04, que instituiu a chamada “Reforma do Poder Judiciário”, passou-se a admitir o status constitucional de princípios que já existiam na legislação ordinária, realçando a importância de se buscar conferir a almejada efetividade aos atos processuais.

Melhor dizendo, insta ponderar no sentido de que tal Emenda passou a prever a necessidade de um tempo razoável de duração de um processo, como se observa pela atual redação da norma prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, o que vem sendo, de um modo mais ou menos uniforme, chamado pela doutrina como princípio da tempestividade da jurisdição, o qual, em última análise, pareceria uma certa constitucionalização de princípios processuais já estabelecidos na legislação ordinária como asseverado acima (como, verbi gratia, as normas contidas nos artigos 125, inciso II do Código de Processo Civil e da Lei nº 9.099/95 – ambas trazendo como princípios processuais, deveres de rápida solução de um litígio, celeridade e economia processuais, dentre outros que visam, em última ratio, atingir tais escopos, tal como se dá com a simplicidade de formas, etc.).

E, muito antes da busca por um número cabalístico (com emprego de fórmulas mágicas ou matemáticas(7) para a sua aferição, o que restaria como praticamente impossível ante as peculiaridades e o grande número de incidentes que poderia, de forma hipotética, ocorrer no processo civil) de dias pré-determinados para a realização de atos processuais, o escopo preconizado pela norma em comento não parece ter sido lançar uma regra específica a respeito do tempo processual, mas, como convém a uma liberdade pública (ou fundamental right, na acepção empregada por J. J. Canotilho, em seu conhecido Curso de Direito Constitucional Português), se buscou estabelecer um princípio norteador da mudança de mentalidade que se espera de magistrados, promotores, advogados e, sobretudo, de legisladores.

Isso porque, como parece despontar com singular obviedade franciscana, se uma lei vier a aumentar ou dificultar o trâmite processual, tornando-o mais longo, sem um fator adequado a justificar tal medida (por exemplo, criando-se uma antinomia(8)), a inovação legislativa será reputada como...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT