Algumas considerações a respeito do regime jurídico dos contratos bancários no ordenamento jurídico pátrio

AutorMSC. Júlio César Ballerini Silva
CargoMagistrado e professor (graduação, pós-graduação e do curso preparatório LFG)

PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES INTERDISCIPLINARES

Tal questão se revela extremamente atual não só porque se tem verificado um grande número de ações versando sobre o tema nos fóruns e Tribunais do país, mas, sobretudo, porque se tem observado fenômenos econômicos, em escala global (primeiro o boom imobiliário norte americano e, depois, por exemplo, a grande recessão decorrente da crise financeira mundial com a quebra de inúmeros bancos públicos e privados nos E.U.A e na Europa, sobretudo em países como a Islândia, em que, como público e notório, tal como divulgado pelos meios de comunicação de massa, os mass media, ocorreram fenômenos intensos como o fato de que, em uma semana, os três maiores bancos privados deste país, acumularam dívidas que ultrapassavam, em dez vezes, o PIB do país).

Como vem sendo ponderado em vários outros artigos de minha autoria, desde há muito, não se pode ter como desconhecido dos operadores do direito, de um modo geral, o fenômeno do esgotamento paradigmático do pensamento jurídico fundado a partir da premissa de um direito natural (concepção tomista que foi empregada por séculos pelos juristas como modo de pensar dogmaticamente o direito) que encontra inúmeras dificuldades de resolver os problemas decorrentes da complexidade das relações intersubjetivas, ainda mais em um mundo que prima pela celeridade decorrente dos próprios avanços tecnológicos num mundo globalizado, o que não pode ficar á margem do ordenamento jurídico (parece sintomático e óbvio que não se possa pretender resolver os problemas decorrentes do mundo moderno, verbi gratia, com contratações eletrônicas, por vetustos brocardos de direito romano canônico – e, pense-se a esse respeito, em situações como o livre mercado, o câmbio e os fatores econômicos cujos efeitos se propagam, em razão de segundos, por veículos como a Internet, influenciando bolsas de valores, com seus reflexos nos mercados futuros e mesmo no mercado físico, como se tem observado pela recessão global que se tem anunciado a partir dos problemas de crédito no mercado norte-americano).

Ou seja, começa-se a compreender que não basta que o ordenamento jurídico passe a prever esta ou aquela conduta eis que fatores, mormente de índole econômica, que permitem a volatização do capital, em tempo recorde, acabam por influenciar de forma tão marcante a sociedade com eficácia muito maior do que a imposta por textos legais (por exemplos, não se desconhece que decisões legislativas tem levado, em muitos países, ao fechamento e à criação de fábricas, com muitos reflexos no que tange, por exemplo, a volume de empregos, geração de renda, qualidade de vida etc...), ou seja, num ambiente como este, não bastaria ao legislador estabelecer que não poderia chover durante um ano, no Território Nacional, eis que haveria óbice físico ao atendimento ao comando normativo, tornando-o nulo pela impropriedade do seu objeto (e a propagação dos efeitos acerca de fenômenos econômicos parece estar começando a suscitar análises analógicas, ao menos no que tange às instituições de crédito, com a devida licença, de modo que, muitas vezes, comandos normativos acerca do tema acabam se tornando manifestamente ineficazes porque leis outras, não tipificadas, como a de mercado, acabam gerando um substrato fático que torna manifestamente inaplicáveis certos comandos jurídicos, a revelar que, em momentos como este, o jura novit cúria, não se prestará para a solução do conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida).

Tanto assim que autores como Celso Lafer propugnam, como proposta inicial para a solução do problema referente ao hiato apontado, a adoção de um novo modelo paradigmático(1) (o referido autor propõe chamá-lo de paradigma da filosofia do direito, para permitir um “pensar” menos dogmático, mais aberto ao “perquerir” ou ao “questionar”, tomando, aliás, o dogma não como um fim em si mesmo (como se dava no modelo paradigmático positivista então dominante), mas, ao contrário, como um ponto de partida, como, ademais, vinha sendo sugerido por Tércio Sampaio Ferraz Jr.,(2) permitindo-se a interpretação que autorize abranger fatores interdisciplinares).

E isso se torna relevante na medida em que, igualmente, se tem por inegável que o Direito seja um fenômeno histórico, revestido de temporalidade e que, nos primórdios da civilização já tinha seu conteúdo intimamente ligado aos desígnios dos detentores do poder (verbi gratia, no Egito Antigo, no período conhecido por Antigo Império, ou seja, entre 2.664 a C e 2.155 a C, cunhou-se a expressão segundo a qual “o justo é o que o faraó ama, e o mal é aquilo que o faraó odeia”(3), não obstante a ponderação de que o justo e ético, para esse povo se confundia com a emblemática noção de maat(4)), reforçando-se o entendimento segundo o qual o direito implica numa evidente técnica de controle social (caráter igualmente destacado pelo já mencionado Tércio Sampaio)(5)

Essas concepções ligando o Direito ao poder se tornam uma questão de grande relevo posto que, em um mundo globalizado, em que o poder econômico se concentra pólos globalizantes opostos aos dos globalizados, se pode passar a questionar se fatores intimamente ligados ao poder não estão colocando em xeque a interpretação que se possa fazer do ordenamento jurídico como um todo (o que se tem revelado como óbvio numa concepção geopolítica, não se podendo, ainda, deixar de atentar para fatores como o financiamento regular, ou irregular(6) de campanhas eleitorais, atuação lícita e ilícita de lobbies, enquanto grupos de pressão acerca de interesses que possam estar em jogo, etc...).

Tal discussão se torna muito evidente e atual, num mundo em que as informações e a tecnologia são difundidas de forma muito rápida, por veículos como a internet e a própria mídia, de um modo geral, observando-se uma crise de efetividade, outro fator de complexidade a ser sopesado (e, lamentavelmente, não se tem observado a preocupação das Faculdades de Direito em enfocar tais situações) em primeiro lugar, do ordenamento jurídico enquanto tal (como se pode entendê-lo como forma de controle social eis que o mesmo para ser alterado exige uma série de atos e formas dos poderes normativos, que demandam um tempo totalmente incompatível com as mudanças sociais, e, sobretudo, econômicas ?), o que vem acompanhado da crise instrumental (se o ordenamento estabelece direitos, em caso de violações a esses direitos tem-se o direito de ação para o devido restabelecimento da situação, o qual, como é cediço, repousa num instrumental processual para que possa ser exercitado), o que nos conduz a um terceiro evento, qual seja, o da crise do Poder Judiciário (ente institucional que tem por função precípua o exercício da jurisdição, ou jurisdicere, poder de “dizer o direito”, de forma imparcial).

Aliás, autores como Montesquieu(7) explicam, sob um prisma histórico, que o Poder Judiciário se revela como um poder criado para suportar os desgastes das mazelas do poder, esclarecendo de forma simples, que se cuida de um poder criado para evitar o desgaste do soberano nas questões políticas polêmicas (pondera no sentido de que o poder de dizer o que é certo e o que é errado dentro de um Estado se revela como o maior poder de um Estado, posto que, quem o detém, pode-se dizer sempre como correto).

Assim, verifica-se que somente fatores muito candentes teriam levado os detentores do poder a não concentrar tal poder para si (resta como tentador dizer-se sempre certo, nunca estando errado) e isso se revela no fato de que, psicologicamente, ninguém gosta de estar errado (as pessoas dificilmente aceitam que lhes digam que estão erradas, optando por acreditar que foram vítimas de injustiça num julgamento a reconhecer as próprias falhas), o que significa que não se revela como raro que o julgador acabe por sempre se indispor com um dos pólos da relação (quando não com ambos), o que explica que a função de dizer o certo e o errado seja extremamente desgastante para quem a detém.

Daí a necessidade do soberano de atribuir a um terceiro tal função, para que este se desgaste politicamente com o fato de tal ou qual decisão, revelando a importância da liberdade do Julgador, que deve ser independente para tal mister, sob pena de se convolar em mero repetidor do soberano, isentando-o da responsabilidade política por seus atos.

Tais variáveis são postas em conflito, de forma candente, na questão que se delineia no presente momento, com a discussão das ações versando sobre a possibilidade de cobranças de inúmeros encargos, analisando-se a regularidade, ou não, de certas práticas nestes tipos de contratos bancários, que impliquem em relações de consumo, quando se verificar a mora do consumidor hipossuficiente (até porque normalmente são invocadas antinomias aparentes de normas, com regimes jurídicos diversos, como se exporá adiante), o que se tem se verificado num sem número de demandas análogas versando sobre tal tema, que tem abarrotado os fóruns do país (como se verifica, aliás, de forma sintomática, pela análise do grande número de Julgados sobre o assunto), o que recomenda, aliás, que às mais das vezes, se tenha que recorrer a um exame sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade.

Não se olvide, inclusive, quanto às dificuldades suscitadas neste ambiente de complexidade, e, muitas vezes, de crises de valores, da lição de Tullio Ascarelli no sentido de que(8) “en la actual crisis de valores, el mundo pide a los juristas nuevas ideas y no sutiles interpretaciones: es necesario, por tanto, reexaminar los conceptos fundamentales.(9)

CRÉDITO COMO BEM DE CONSUMO - A INCIDÊNCIA DA LEI Nº 8.078/90

E como dito, linhas atrás, não é desconhecido de qualquer operador do direito, na sua acepção ampla, a existência de um sem número de demandas análogas questionando a natureza do contrato bancário, buscando inseri-lo num universo próprio, afastado das demais relações de consumo, como se fosse possível lhe atribuir um regime jurídico próprio...

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