Resolução por onerosidade excessiva

AutorLuiz Gastão Paes de Barros Leães
Páginas23-37

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1. Preliminares

1.1 A longa evolução da teoria dos contratos deixou definitivamente decantada, já no fim do século XVIII, os princípios gerais que a informam — o princípio da liberdade de contratar e o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato — orientados no sentido de reconhecer o poder jurídico da vontade individual para gerar direitos e obrigações. Políticas soli-daristas, desde meados do século XIX, elaboraram normas restritivas a esses princípios, ora ditadas pelo chamado dirigismo contratual, ora pela adoção de outros paradigmas, como a boa-fé objetiva, o equilíbrio económico e a função social, que não derrogaram os princípios cardeais acima apontados, mas lhe imprimiram nova funcionalidade.

1.2 Daí que representa um evidente exagero (ou mero amor ao novo) falar em declínio da autonomia privada ou em superação do modelo clássico dos contratos, centrado no poder criativo da vontade individual, em favor de um novo padrão, introduzido pela lei, que emprestaria ao contrato a sua força obrigatória, voltada no sentido da justiça nas relações entre as partes.1 Dito poder, no duplo campo da cele-bração e da estipulação, continua porém a prevalecer no sistema jurídico vigente, como valor central, permitindo que as partes contratantes disciplinem os seus interesses como melhor lhes convier, fazendo da convenção uma verdadeira norma jurídica, que entre elas opera como lei (lex con-tractus).

1.3 Uma vez celebrada, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, a convenção passa, portanto, a ser cogente entre os signatários, como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos (pacta sunt servanda). O que as partes, por livre acordo de vontade, estipularam e aceitaram, deverá por elas ser cumprido, sob pena de execução patrimonial do inadimplente. Dessa obrigatoriedade decorre o dogma da intangibilidade do conteúdo do contrato, a menos que haja novo concurso de vontades, alterando a avença, ou haja escusa justificada para eximir uma das partes da obrigação, em virtude da ocorrência de caso fortuito ou de força maior, que tornou a prestação impossível. Nem mesmo em juízo pode

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ser modificado o conteúdo do que foi livremente pactuado, justificando-se a intervenção judicial apenas e tão-somente nas hipóteses previstas em lei para a decretação da nulidade ou da resolução da avença.

1.4 Essa intangibilidade do conteúdo do contrato foi sempre considerada a pedra angular da segurança do comércio jurídico e se consolidou definitivamente como tal ao longo de toda a evolução do direito contratual. Quem contrata quer precisamente se resguardar de eventos futuros; e seria uma incongruência que, sendo esta a sua finalidade básica, pudesse o ajuste ser rompido, ou alterado, segundo a vontade unilateral dos contratantes. No entanto, exce-ções ao princípio de intangibilidade têm sido admitidas, principalmente a partir do século anterior, por razões de equidade, sem que se queira com isso sinalizar que se pretenda bani-la do direito atual dos contratos, até porque a função de certeza e segurança jurídicas do princípio àopactum sunt servanda é que garante a sobrevivência do instituto.

1.5 Ocorre que acontecimentos futuros podem sobrevir, alterando de tal modo as circunstâncias dentro das quais foi pactuado o contrato, que tornam extremamente gravoso o cumprimento da obrigação por parte de um dos contratantes, no momento de sua execução. Nesse sentido, a alteração radical das condições económicas, nas quais o contrato foi celebrado, tem sido considerada uma das causas possíveis que, com o concurso de outros fatores, podem determinar a resolução e até a revisão do ajuste. Várias teorias procuraram apurar sob que fundamento, e em que condições, a alteração das circunstâncias autorizaria o devedor — que se sacrificaria exagerada-mente com a execução do contrato — a promover sua dissolução, ou postular sua revisão.

1.6 Para justificar as exceções que a equidade imporia ao princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos, a doutrina, inicialmente, fez ressurgir a antiga proposição do direito canónico chamada de cláusula rebus sic stantibus, supostamente implícita nos contratos, segundo a qual a convenção só permaneceria íntegra e intangível quando não alteradas, em sua fase de execução, as circunstâncias de fato levadas em consideração pelas partes no momento de sua conclusão.

1.7 Essa doutrina originou-se, como se sabe, no direito dos pós-glosadores, sob a influência de princípios de fundo ético e religioso, mas, dada a extrema "generalidade e imprecisão" da cláusula em apreço, provocou, desde logo, dúvidas quanto à sua aplicação nas situações particulares, dando ensejo a interpretações desencontradas, até que, a partir do fim do século XIV, procurou-se delimitar o seu campo de atuaçao, circunscrevendo-a aos contratos de trato sucessivo, ou de execução diferida. Para essa orientação, baseou-se em texto de Neratius, em que se afirmava que o contrato devia ser cumprido no pressuposto de que se conservassem imutáveis as condições externas, mas que, se houvesse alterações, a execução deveria ser igualmente modificada: "contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelleguntur" (Digesto, liv. XII, tit. IV, fr. 8).

1.8 Com o tempo, a cláusula entrou em declínio, a ponto de, à época das codificações oitocentistas, já estar no esquecimento. Ela voltaria a renascer no primeiro quartel do século XX, após a primeira conflagração mundial, sob diferentes fundamentos teóricos, com novas reformulações. Em síntese, sucessivas variantes então se apresentaram, recebendo, progressivamente, consagração doutrinária ou ju-risprudencial: a) a teoria da pressuposição; b) a teoria da superveniência ou da vontade marginal; c) a teoria da base subjetiva do negócio; d) a teoria da base objetiva do negócio; e, e) a teoria da imprevisão.

1.9 Já nos meados do século XIX, Windscheid restaurou-lhe o prestígio, quando lançou a teoria da pressuposição (Vo-

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raussetzung). Segundo essa teoria, quem celebra um contrato supõe que, na execução do mesmo, serão mantidas as mesmas condições gerais que, a seu juízo, prevaleciam no momento da conclusão, desobrigando-se se as condições futuras se mostrarem radicalmente diferentes das que teriam "motivado" sua manifestação de vontade. Ou seja, se tal pressuposto não subsistir, o efeito do liame contratual não corresponderá mais ao querer do contratante, de onde a escusa para o seu inadimple-mento.

1.10 Em dois artigos publicados em 1912-1913, Giuseppe Osti desenvolveu a teoria da vontade marginal, muito próxima da teoria de Windscheid, segundo a qual, ao lado da vontade de contratar, em que o contratante se obriga ao cumprimento de certa prestação, coexistiria uma "vontade marginal", implícita na vontade declarada, de que a prestação fosse cumprida nas circunstâncias previstas. Se as circunstâncias se modificaram, conduzindo o cumprimento da obrigação a resultado diverso da vontade marginal, legitimar-se-ia a sua eliminação.

1.11 Do mesmo teor seria também a teoria da base subjetiva do negócio, lançada por Paulo Oertmann em 1921, cuja mola mestra é a representação íntima que os contratantes teriam das circunstâncias básicas em que se formou a vontade dos contraentes, legitimando-se o desate do ajuste se, por ocasião da execução, fatos supervenientes viessem a alterar a base em que se plasmou a vontade negociai.

1.12 Todas essas teorias se revelaram falhas porque demais subjetivas, levando a insegurança às relações jurídicas, sem contar que são incompatíveis com o sistema brasileiro que, em linha de princípio, não leva em consideração os motivos do ato, que não viciam o consentimento exceto quando expressamente integram o mesmo, como razão determinante ou condição que dela dependa. Em suma, na vida negociai, quando da análise do cumprimento da obriga-ção, não há espaço para a pesquisa sobre a motivação íntima das pessoas.2

1.13 Procurando suprir a falha dessas teorias, Karl Larenz desenvolveu a teoria da base objetiva do negócio (Geschãfts-grundlage), segundo a qual, a par da análise do pressuposto subjetivo, cumpriria examinar a base objetiva do negócio, de tal sorte que a manutenção das condições gerais no curso do contrato, semelhantes às que prevaleciam no momento da conclusão, constituiria o pressuposto objetivo da vontade declarada pelas partes, tenham estas tido ou não consciência de sua imanência na convenção. Ou seja, na celebração do contrato, são levadas em consideração certas condições básicas, de caráter geral, tais como a ordem económica do país, o poder aquisitivo da moeda e as circunstâncias de mercado. Se eventos supervenientes fizerem "desaparecer" essas condições, impondo ao devedor um esforço muito além da previsão que pudesse ser feita ao tempo da pactuação, legitimar-se-ia a resolução ou a revisão do contrato. A referida base objetiva desapareceria quando ocorresse (i) destruição da relação de equivalência ou (ii) frustração da finalidade do contrato.

1.14 Uma formulação diferente dessas teses foi a que se processou na França sob a denominação de teoria da imprevisão, formulada originalmente pela jurisprudência administrativa e, em seguida, acolhida pela Lei Faillot, de 1918, segundo a qual a superveniência de acontecimentos inesperados ao tempo da conclusão do contrato, que tornem muito difícil ou extraordinariamente gravosa a prestação, poderá exonerar a parte prejudicada do cumprimento de

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sua obrigação, ou autorizá-la a obter a revisão judicial da mesma.

1.15 No Brasil, apesar de referências esparsas às demais doutrinas,3 é essa última teoria que recebeu paulatinamente a adesão da doutrina, da jurisprudência e por fim na lei, inicialmente sob a velha...

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