A resolução alternativa de litígios no direito da União Europeia

AutorJ. Pegado Liz
CargoConselheiro do Cese, relator dos pareceres do Cese sobre as propostas da Comissão sobre ADR e ODR
Páginas15-48

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Excertos

"Reconheceu-se a necessidade de garantir que quem se ocupe da gestão e do funcionamento das RAL, desde os funcionários aos mediadores ou árbitros, tenha os conhecimentos, as capacidades, a experiência e as competências pessoais e profissionais para o desempenho, de forma idónea e imparcial, das suas funções"

"Seria altamente desejável que a Comissão procedesse à avaliação das principais abordagens regulatórias dos estados-membros relativamente à aplicação da Diretiva 2008/52/CE sobre mediação civil e comercial (artigo 12°), conforme sugerido pelo PE, em face do aparente desnorte ao nível dos diversos sistemas nacionais na sua transposição"

"Foi com séria apreensão que se constatou que a Comissão não deixou claro nem expresso que as RAL não são nem substituto nem verdadeira ‘alternativa’ à função dos tribunais judiciais, mas antes mero meio complementar"

"A noção do ‘consumidor’ em certo tipo de contratos de dupla finalidade, em que a atividade comercial da pessoa não seja predominante no contexto global do contrato, que se saudou, pecava, na proposta, por indefinição no articulado"

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1. Introdução: origens remotas

De há muito que, em alguns países europeus, que não apenas os estados-membros da ue, o deficiente desempenho da Justiça em termos de celeridade - a sua inadequação social em termos de custos e a sua complexidade formal - tinha levado à defesa da adoção, casuística ou institucionalizada, de mecanismos, "alternativos" e mais "próximos" dos cidadãos, de resolução de conflitos em diversos domínios, dos quais cedo se destacou o dos conflitos de consumo1.

A motivação social e económica subjacente depressa ganhou a classe política, que viu na criação de tais mecanismos de resolução de conflitos, designadamente de consumo, um instrumento político capaz, de um lado, sem grande despesa e sem grande dificuldade de implementação, de responder a legítimos anseios dos cidadãos, e, de outro lado, de poder protelar ou mesmo esquecer a reforma profunda dos sistemas de justiça, essa bem mais complexa e dispendiosa.

Daí que não só se tenham multiplicado os textos de eminentes académicos de todas as nacionalidades fazendo a apologia dos meios alternativos de justiça, como, em vários países, foram surgindo procedimentos diversos, mais ou menos institucionalizados, ligados às tradições jurídicas respectivas, de fórmulas de resolução de diferendos, nomeadamente no domínio das relações de consumo em sentido amplo2.

Rapidamente, meras experiências ou projetos incipientes foram, no entanto, alcandroados ao estatuto de panaceia para a melhor aplicação da justiça e anunciados como substitutos, vantajosos, credíveis e desejáveis, do funcionamento dos tribunais.

A breve trecho foi-se criando e desenvolvendo a ideia de uma "justiça de proximidade", mais rápida, mais eficiente, menos dispendiosa, mais próxima, menos burocrática, enfim, de uma justiça mais "justa".

Ideal que, no entanto, os fatos não confirmaram e a poderosa realidade se encarregou de desmentir, com a reconhecida "falência" de grande parte dos sistemas nacionais instituídos e a manifesta incapacidade de lidarem com conflitos transfronteiras e com situações de interesses ou direitos coletivos lesados.

A nível europeu, foi o Conselho da europa que, já em 1973, primeiro reconheceu o direito dos consumidores a um "acesso fácil,

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pouco dispendioso a um sistema de jurisdição nacional ou a uma arbitragem oficial, no caso de pedidos de pequeno valor"3.

As instituições da união europeia também não ficaram imunes ao desenvolvimento deste mito; antes, desde muito cedo, o apoiaram e incentivaram.

Com efeito, data de 1981 a primeira referência, num texto da Comissão, à necessidade de favorecer o "desenvolvimento de soluções não judiciais de resolução de conflitos e o lançamento de "projetospiloto" a nível nacional para o tratamento dos chamados "pequenos litígios de consumo"4.

Os consumidores podem confiar em instâncias diferentes do juiz, desde e na medida em que as suas associações se encontrem representadas nessas instâncias

É, no entanto, apenas em 1985 que a Comissão publica um célebre Memorandum sobre "o acesso dos consumidores à Justiça"5, complementado, logo em 1987, por uma "Comunicação Complementar da Comissão sobre o acesso dos consumidores à Justiça"6. Aí se chama a atenção para a "dimensão comunitária" da "inadaptação dos sistemas judiciários tradicionais no tratamento das pequenas queixas", se analisam os sistemas nacionais de processos judiciais simplificados, de defesa dos interesses coletivos e de conciliação e arbitragem existentes à altura e se conclui pela necessidade do "fortalecimento dos meios extrajudiciais de reparação aos consumidores".

Oito anos decorreram até que a Comissão relançasse o debate público sobre esta matéria, com o lançamento do "livro Verde sobre o acesso dos Consumidores à Justiça e a resolução dos litígios de consumo no mercado único"7. Foi então que, pela primeira vez, se abordou, sem ambiguidades, a opção por mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos de consumo e, citando designadamente o "projeto-piloto de lisboa"8, se afirmou que "os consumidores podem confiar em instâncias diferentes do juiz, desde e na medida em que as suas associações se encontrem representadas nessas instâncias ou, pelo menos, tenham estado associadas à definição dos critérios que garantem a transparência do processo".

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2. Breve súmula de antecedentes próximos
2. 1 o Plano de Ação relativo ao acesso dos consumidores à justiça e à resolução dos litígios de consumo no mercado interno

A década de 1990 ir-se-ia revelar profícua no desenvolver de ações a nível comunitário no sentido de consolidar a intenção de alicerçar as bases para um sistema de justiça alternativo para resolução dos litígios de consumo.

O plano de ação de 19969, fazendo eco de todo um ambiente favoravel à ideia10, e já sob a orientação da Comissária emma Bonino11, demarcou, como uma das linhas prioritárias de atuação, "a definição de uma lista de critérios mínimos para a instauração de processos extrajudiciais aplicáveis à resolução extrajudicial de conflitos intracomunitários de consumo e o estabelecimento de um formulário simplificado, a nível europeu, para a formulação de reclamações relacionadas com litígios de consumo de determinada natureza e montante".

2. 2 A comunicação da comissão sobre a resolução extrajudiciária de conflitos de consumo, a recomendação relativa aos princípios aplicáveis aos órgãos responsáveis pela resolução extrajudiciária dos litígios de consumo de 1998 e a comunicação da comissão relativa ao Alargamento do acesso do consumidor aos sistemas alternativos de resolução de litígios de 2001

A concretização desta diretriz veio a ter lugar em dois momentos, separados por três anos.

Em março de 1998, a Comissão publicou uma primeira comunicação, acompanhada de uma recomendação em que se estabelece não só um formulário europeu para as reclamações dos consumidores, mas se avança com uma série de "princípios orientadores" relativos à organização e funcionamento dos órgãos nacionais encarregados da resolução extrajudiciária dos litígios de consumo12. Estava dado um passo importante no sentido da definição de um sistema europeu de resolução extrajudicial de conflitos.

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Aconteceu, porém, que o caráter não coercivo da iniciativa levou a que a generalidade dos estados-membros lhe não dessem seguimento ou não se concertassem na sua adequada implementação13.

Em 2001, a Comissão publicou nova comunicação relativa ao "alargamento do acesso do consumidor aos sistemas alternativos de resolução de litígios"14, com o objetivo de "garantir que os consumidores possam dispor de uma maior escolha e flexibilidade, designadamente no âmbito do comércio electrónico e tendo em conta os progressos ocorridos a nível da tecnologia das comunicações", aperfeiçoando o regime da anterior recomendação e estendendo os seus princípios "aos organismos extrajudiciais envolvidos na resolução consensual de litígios do consumidor que não sejam abrangidos pela Recomendação 98/257/CE" .

Apesar deste esforço de desenvolvimento, o caráter não cogente das medidas e orientações definidas, denunciado e contestado em geral pelas associações de consumidores, não logrou que o sistema alcançasse uma adesão voluntária satisfatória por parte dos estados-membros e das organizações de profissionais e de consumidores interessadas. Entretanto, em vários...

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