A resistencia do STF ao exercicio do controle de convencionalidade/The resistance of the Brazilian Supreme Court towards the conventionality control.

AutorSilva, Julia Lenzi

Introducao

Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH) proferiu sentenca condenatoria contra o Brasil no caso Gomes Lund e outros ("Caso Guerrilha do Araguaia"), atestando a inconvencionalidade material da Lei n. 6.683/79 no que tange a interpretacao que assegura anistia aos agentes da repressao (civis e militares) responsaveis por graves violacoes aos direitos humanos cometidas durante o regime militar. No bojo da sentenca condenatoria, a Corte-IDH estabeleceu a obrigacao de o Estado brasileiro proceder a investigacao, persecucao e eventual punicao penal dos referidos agentes por crimes como de tortura, desaparecimento forcado e execucao extrajudicial.

Ocorre que tal condenacao no ambito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos estabelece um conflito aparente com a decisao proferida em Abril de 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF n. 153. Na ocasiao, o STF declarou que a interpretacao dada ao paragrafo unico do art. 1 da Lei n. 6.683/79, que concede anistia aos agentes da repressao pelos crimes cometidos contra opositores politicos da ditadura militar brasileira, esta em conformidade com a Constituicao Federal de 1988, tendo sido por ela recepcionada.

A partir deste panorama, o presente trabalho busca demonstrar que o conflito entre as decisoes das distintas ordens juridicas (internacional e de direito interno) nao e insoluvel e, ademais, que sua superacao pode representar uma oportunidade historica para que o STF livre-se do ranco "dualista-autoritario" de sua jurisprudencia em materia de direito internacional, inaugurando, assim, uma nova era, calcada no respeito aos compromissos internacionais assumidos em materia de Direitos Humanos e no Dialogo de Cortes.

Nesse sentido, como premissa teorica estrutural, e estabelecido um dialogo com os ensinamentos do jurista austriaco Hans Kelsen acerca do conceito de Ordenamento Juridico e sua relacao com a normatividade internacional. Tal esforco teorico tem como objetivo demonstrar que o posicionamento adotado pelo STF no ambito da ADPF n. 153 nao dialoga sequer com as bases do positivismo juridico de matriz kelseniana, reeditando uma postura nacionalista calcada em um conceito roto de soberania estatal, que, ademais, destoa por completo da postura adotada por outros estados latino-americanos que tambem enfrentaram julgamentos acerca de suas leis de anistia (caso Barrios Altos x Peru; caso Almonacid Arellano x Chile).

Em um segundo momento, como proposta de superacao do conflito aparente entre as distintas decisoes, apresenta-se a teoria do duplo controle ou crivo dos Direitos Humanos, que destaca a necessidade de atuacao em separado do controle de constitucionalidade (STF e juizos nacionais) e do controle de convencionalidade de matriz externa (Corte-IDH e demais orgaos internacionais judiciais ou quase-judiciais em materia de direitos humanos), com o intuito de combater o que Andre de Carvalho Ramos tem chamado de "truque de ilusionista", que consiste, basicamente, no comportamento estatal de firmar compromisso perante o Direito Internacional, violar repetidamente suas normas e protestar, em sua defesa, que as estaria cumprindo "sob sua otica peculiar" (CARVALHO RAMOS, 2005, p. 53-63).

Seguindo essa linha argumentativa, sustenta-se que nao e suficiente que o Estado assine e incorpore formalmente Tratados Internacionais de Direitos Humanos - ainda que defenda possuirem eles status normativo diferenciado - supralegal ou mesmo constitucional, para aqueles aprovados pelo procedimento especial previsto no art. 5, [section]3 da CF, como definiu e sustenta o proprio Supremo no julgamento de caso envolvendo a prisao civil do depositario infiel (2) - se, no que tange a sua interpretacao, os Poderes estatais continuam a adotar uma postura nacionalista.

Como proposta de solucao de tal contradicao, apresenta-se o dialogo de cortes como instrumental juridico a ser utilizado previamente pelos Tribunais nacionais. Todavia, quando ja nao for possivel se valer deste porque o conflito aparente encontra-se, de fato instaurado, propoe-se a adocao da teoria do duplo controle ou crivo dos direitos humanos, segundo a qual todo ato interno nao deve guardar conformidade apenas com a Constituicao (controle de constitucionalidade), se nao tambem com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado (controle de convencionalidade). No caso da Lei de Anistia brasileira, destaca-se que ela sobreviveu intacta ao primeiro filtro, mas foi rechacada no ambito do controle de convencionalidade de matriz externa, o que, segundo a referida teoria, impediria sua aplicacao em ambito interno e determinaria, como consequencia, o cumprimento da sentenca da Corte-IDH pelo Brasil.

Tais propostas tem como intuito primevo fortalecer o sistema interamericano de Direitos Humanos e contribuir para o debate acerca da necessidade de transformacao da postura isolacionista dos tribunais brasileiros, que seguem interpretando e decidindo com pouquissima atencao a jurisprudencia internacional, valendo-se da mistica em torno do discurso "encantatorio" (SANCHEZ RUBIO, 2011) dos direitos humanos e agravando sua crise de efetividade.

  1. Nacionalismo juridico brasileiro e o desafio da teoria monista de Kelsen

    A teoria de Kelsen (3), conhecida como monismo juridico, estriba-se em alguns pressupostos essenciais que devem ser extraidos de sua teoria do ordenamento juridico ou dinamica juridica, em suas palavras (KELSEN, 2006). Ao contrario da analise estatica do ordenamento juridico, a qual estuda a norma isoladamente, o exame da dinamica juridica exige uma investigacao inserida num contexto, que recebe o nome de ordenamento. Portanto, nao e possivel conceber a norma de forma independente. E segundo este pensamento que Kelsen constroi sua teoria relacional da validade juridica (4), ou seja, uma cadeia logico-sequencial na qual uma norma imputa validade a outra e que conduz a ideia de dependencia linear, ja que uma norma so possui validade em virtude de existir outra norma anterior e hierarquicamente superior que a valida. Este raciocinio leva a necessidade de se estabelecer uma norma inicial que valide todas as demais. Esta norma-origem Kelsen chama de norma hipotetica fundamental. (5)

    O monismo juridico, compreendido como uma concepcao unitaria do ordenamento, e explicado, assim, pelo recurso a existencia de apenas uma norma hipotetica fundamental. Esta norma nao se confunde com a constituicao. Aquela e pressuposta, ao passo que esta e posta. A norma hipotetica fundamental e um pre-requisito teoretico e gnosiologico do sistema juridico (6), sendo vazia de conteudo, servindo apenas como um corolario logico do Direito, entendido como um sistema racional de ordenacao. Deste modo, qualquer que seja a ordem juridica vigente, ela sempre se sustentaria na pressuposicao deste principio logico. Essa e a perspectiva a partir da qual este estudo inicia a analise do problema proposto.

    Kelsen foi um estudioso do direito internacional, sobretudo, durante o periodo em que viveu nos Estados Unidos da America. A defesa de um ordenamento juridico uno representa, na teoria kelseniana, uma opcao teorica muito clara na obra do jurista austriaco, a relacao de simbiose entre Direito e Estado. (7) Um dos pressupostos fundamentais da teoria pura e o direito positivo. Kelsen nao so afirma que a ciencia juridica deve se ocupar do direito positivo como estabelece que todo direito e positivo e, por isso, apenas e direito aquilo que provem da vontade do Estado. Ora, se o direito internacional surge justamente da vontade dos Estados, para Kelsen (8), nao ha sentido algum em se submeter as normas internacionais ao imperio do direito interno. Tudo e direito positivo, do que se conclui que provem da pressuposicao da mesma norma hipotetica fundamental, que valida toda a ordem juridica seja interna ou externa.

    Neste sentido, pode-se apontar que Kelsen era partidario de uma prevalencia do direito internacional sobre o direito interno, desenvolvendo uma argumentacao no sentido de comprovar que o direito nacional e o internacional fazem parte de um mesmo sistema. Ele defende que uma norma de direito interno possa ser considerada invalida por contrariar uma norma de direito externo, contudo ela permaneceria no ordenamento e continuaria aplicavel ate que fosse invalidada pelo orgao competente, da mesma forma como ja ocorre com uma norma inconstitucional. Portanto, a tese de que a existencia de conflito entre o direito nacional e o internacional seria suficiente para se afirmar um dualismo juridico e combatida pelo jurista austriaco (KELSEN, 2000, p. 529).

    Por outro lado, nao se pode deixar de mencionar que ele mesmo, embora expressasse a preferencia por uma concepcao unitaria do Direito, nao descuidava de lembrar a possibilidade de existirem mecanismos de internalizacao das normas internacionais no direito nacional, inclusive podendo a ordem estatal estabelecer uma hierarquia entre as fontes internas e as externas no ordenamento. Kelsen enfatiza que, neste caso, deve-se sempre recorrer ao que dispoe o direito positivo. Conforme a explicacao do jurista austriaco, o direito positivo do Estado pode prever que, em caso de contradicao entre o direito nacional e o internacional, o primeiro tenha prioridade ou o segundo, assim como pode prever que o direito internacional deva se transformar em direito interno antes de ser aplicado internamente. Ora, nao e a natureza interna ou externa do direito, como querem os pluralistas, que determina qual postura a ser adotada, mas sim o conteudo do direito positivo do Estado. (KELSEN, 2000, p. 537-539).

    Enfim, o proprio Kelsen, mesmo sendo defensor de um direito unitario, nao desconhecia a realidade do direito internacional, marcada pela baixa coercibilidade de suas normas. No entanto, tambem era sabedor que a escolha entre a primazia do direito internacional sobre o nacional e vice-versa nao e uma tarefa que possa ser alcancada pela ciencia juridica...

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