A resistência no discurso oficial de João Mangabeira: diálogos com o Supremo Tribunal Federal e Getúlio Vargas.

AutorÁlvaro Gonçalves Andreucci
CargoDoutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador do PROIN (Projeto Integrado Arquivo Universidade) e professor de História do Direito e de História Contemporânea na Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
Páginas55-90

Page 55

Álvaro Gonçalves Andreucci2

Nome de praça em Salvador e de uma Fundação em Brasília, João Mangabeira foi um dos fundadores do partido Esquerda Democrática3, em 1945, e o primeiro presidente do Partido Socialista Brasileiro, em 1947. Sua trajetória política, após o primeiro governo de Vargas, encontrou maior liberdade de ação e de divulgação de ideias substanciadas pelo caráter social, democrático e pautadas pela convicção numa organização constitucional que funcionasse como instrumento eficaz na defesa dos direitos e garantias – apesar da cassação ao Partido Comunista feita pelo governo Dutra em 7 de maio de 1947. Porém, anos antes, seus ideais chocaramse frontalmente com a política exercida pelo governo de

*Uma versão anterior deste artigo foi originalmente apresentada no Seminário Internacional “Relações Raciais, Direito e História” na Universidade Federal de Santa Catarina, em 17 de setembro de 2007.

Page 56

Getúlio Vargas, célebre, entre outras tantas coisas, pela frase: “A Constituição é como as virgens: foi feita para ser violada”4

Essas duas concepções sobre o papel e o funcionamento do Estado simbolizam a trajetória de dois personagens de nossa história que conviveram num período de transformações intensas, tanto nacionalmente quanto internacionalmente ao longo dos anos 30. Políticos da Primeira República – um no Rio grande do Sul e outro na Bahia –, após a Revolução de 1930, suas trajetórias se cruzariam, inicialmente como amigos e, posteriormente, como inimigos políticos. Almoços em família no início da década se transformariam em cassação de mandado do deputado e ordem de prisão. A resposta viria em grandes protestos feitos por Mangabeira apontando para a ilegalidade do Estado e da manipulação de suas instituições.

O embate, originalmente estabelecido entre um membro do Poder Legislativo, o deputado João Mangabeira, e o ocupante mais alto do Poder Executivo, o presidente Getúlio Vargas, transferiuse para o Poder Judiciário a partir dos habeascorpus impetrados pelo baiano, afirmando a ilegalidade de sua prisão e da criação de um tribunal de exceção denominado Tribunal de Segurança Nacional (TSN). Coube a instância mais alta do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF), posicionarse sobre as questões levantadas que, em última instância, definiam legalmente os rumos que o país poderia tomar. Em outras palavras, cabia ao STF se posicionar sobre o alcance das medidas e orientações políticas do Executivo, legitimar as extensões de suas arbitrariedades e os limites de suas ações; o que vale dizer que os ministros do STF tinham claramente diante de si uma espinhosa decisão política.

Este artigo analisa alguns aspectos da incisiva voz de oposição que o deputado baiano bradou na tentativa de estabelecer um diálogo com o Poder Judiciário, após sua prisão como Deputado em 1936, contra o autoritarismo das instituições oficiais do Estado, antes mesmo da implantação do Estado Novo.

Deputados presos, rumo ao autoritarismo

João Mangabeira nasceu na Bahia, em 1880, e formouse pela Faculdade de Direito de Salvador em 1897. Em Ilhéus, fundou o jornal A Luta, que dirigiu até 1907, quando passou a exercer cargos públicos e iniciou uma carreira política. Foram importantes os anos em que atuou na famosa Campanha Civilista liderada por Rui Barbosa, apesar de ter saído derrotado do pleito em 1910. Esta experiência reforçou sua inclinação pela luta política, calcada na defesa dos princípios da liberdade e do constitucionalismo.

Durante a Primeira República Mangabeira exerceu diversos mandatos como deputado federal e cargos políticos tendo iniciado a década de 1930 como Sena-

Page 57

dor. Logo em seguida envolveuse com os preparativos para a formação da Assembleia Constituinte, instalada em 1933. Depois de promulgada a Constituição, em 1934, Mangabeira foi eleito deputado federal, assumindo o mandato em maio de 1935.

O ano de 1935 é marcado pela forte oposição entre tendências de direita, com a expressão mais autoritária na Ação Integralista Brasileira (AIB), e de esquerda, representada principalmente pela Aliança Nacional Libertadora5. Paulo Sérgio Pinheiro, na obra Estratégias da Ilusão, demonstra a intensidade da repressão desencadeada após a revolta de novembro de 1935, quando foram presas, segundo o relatório do chefe de polícia, de 27 de novembro de 1935 a 31 de maio de 1936 no Distrito Federal, 7.056 pessoas: “As prisões receberam jornalistas, advogados, médicos e estudantes, refletindo a composição da ANL. A Casa de Detenção ficou tão cheia que foi preciso transformar em prisão um navio do Lloyd Brasileiro, o Pedro I”67. João Mangabeira impetrou habeascorpus à Corte Suprema, em 4 de janeiro de 1936, em favor dos que foram recolhidos ao navio Pedro I, inclusive seu filho, Francisco Mangabeira. O pedido foi negado. Seguiramse outros pedidos que também não foram aceitos. No dia 21 de março o Governo obteve a prorrogação do estado de guerra por mais 90 dias e, dois dias depois, em 23 de março, João Mangabeira e os Deputados Abguar Bastos, Domingos Velascos e Otávio Silveira foram presos com o Senador Abel Chermont, no Quartel do Regimento de Cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro8

A repressão foi orquestrada graças às alterações solicitadas por Getúlio Vargas – e aceita pela Câmara dos Deputados – na Lei de Segurança Nacional, em 3 de Dezembro de 1935. O projeto que concedia maiores poderes ao Executivo foi aprovado em caráter de urgência no dia 12. Uma minoria dos deputados considerouo ação inconstitucional. Com os novos dispositivos da Lei, a prorrogação do estado de sítio e a equiparação a estado de guerra, além da suspensão das garantias constitucionais, viuse o Executivo com as ferramentas para efetuar prisões entre os próprios membros do Legislativo.

Na mesma noite de sua prisão, o deputado encontrou um amigo famoso que também estava detido. Era Jorge Amado, que no prefácio do livro João Mangabeira: República e Socialismo no Brasil9, escrito pelo filho de Mangabeira, Francisco, descreve esse encontro nas dependências policiais:

Jamais poderei esquecer certa noite de 1936. Encontravame preso numa das nefandas salas da polícia política e social do Rio de Janeiro, quando pela madrugada (madrugadas dos interrogatórios e das torturas) aconteceu movimentação excepcional de tiras, delegados, comissários, ocupando os corredores, as armas em punho. Que sucedera? – perguntávamos uns

Page 58

aos outros, inquietos. De repente, ouvimos gritos de indignação, um homem vinha arrastado pelo corredor; era o então deputado federal e capitão do Exército, Domingos Velasco. Protestava, proclamando aqueles seus dois títulos que deixavam de protegê-lo com a declaração do Estado de Guerra. Naquela noite vimos atravessar o sombrio corredor para a sala do lado da nossa, o senador Abel Chermont (e seu filho Francisco), o parlamentar e escritos Abguar Bastos e mestre João Mangabeira, deputado que da tribuna da Câmara Federal denunciava a reação desencadeada pelo Governo e defendia os revolucionários que enchiam as prisões de todo o país desde o levante de novembro de 1935 – seu filho, o ensaísta Francisco Mangabeira, encontravase preso havia meses. ‘Orgulhome dele’, declarara João Mangabeira na tribuna da Câmara, falando do filho que estava na cadeia. Tranqüilo com aquele destemor de Ilhéus, atravessou o corredor e sua dignidade de tal maneira se impunha que os tiras não o seguravam, não se atreviam a tocálo. Eu me colocara junto à porta da sala. Ao verme, João Mangabeira parou e, como se estivesse numa livraria e não nos cárceres da polícia política, começou a conversar comigo, sorrindo. Pela manhã, os parlamentares foram levados de nossa vizinhança.

Foi também nas dependências da polícia militar, em 30 de março, que Mangabeira recusouse a prestar declarações e a responder ao auto de qualificação por não reconhecer na polícia competência para inquirir um Deputado. Aproveitou a situação para fazer um protesto contra a sua prisão, que julgava ilegal, lavrado pelo Delegado Bellens Porto, quando da primeira pergunta do referido auto:

Não me tendo encontrado, até agora, senão com os agentes subalternos, que, visivelmente constrangidos, e com a máxima cortesia possível em casos tais, executaram o crime, que outros lhe haviam mandado perpetrar, aproveito este momento para protestar contra a violência feita à letra expressa da Constituição e contra o desrespeito e a diminuição infligidos à Câmara dos Deputados, de que tenho a honra de ser membro. É que, Deputado Federal, ainda em caso de guerra contra o estrangeiro, e do território nacional por ele invadido, eu não poderia ser preso, nem processado, sem licença da Câmara, ou da Seção Permanente, em sua ausência, salva flagrante de crime inafiançável.

O autor segue explicando no protesto por que sua prisão foi ilegal, asseverando que o estado de guerra suspenderia só as garantias e, nesse sentido, não poderia suspender nem suprimir nenhum direito, princípios básicos da organização social e política. Uma reforma constitucional seria necessária para modificá-

Page 59

los. Foi além, dizendo que as imunidades parlamentares não eram nem direitos nem garantias, mas sim atributos próprios da função, como a vitaliciedade e a inamovibilidade dos Juízes. É por isso que não figuravam no “Capítulo dos Direitos e das Garantias” da Constituição (Título III), mas no Título I: “Da organização Federal”, no capítulo: “Do Poder Legislativo”. E aproveitou para tecer uma crítica direta ao poder autoritário do Executivo que, pelas mãos de Getúlio Vargas, havia decretado a prisão de parlamentares, tornandose uma autocracia absoluta

Se ao Poder Executivo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT