Autonomia privada no direito do trabalho: o resgate da individualidade do sujeito trabalhador

AutorRodrigo Trindade de Souza
CargoJuiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região
Páginas71-84

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1. Introdução

Poucos elementos do mundo jurídico se perpetuaram mais como instituição, e variaram de forma mais intensa em seu conteúdo, que o contrato. A historicidade dos pactos passa pela dogmática intransigente da forma, pelo alcance dos extremos absolutos de de?nição de conteúdo, pela colonização das mais diversas operações, até alcançar a vinculação ao “social”. A partir daí, adentra na amenização de seus contornos e, em aparente paradoxo, chega na contemporaneidade da ampliação de horizontes e funções.

A inserção do Direito do Trabalho no grande campo do Direito Privado não impediu a formação de diversas — e bem fundadas — críticas à aplicação de referências principiológicas do Direito Obrigacional. Em especial, é a utilidade de identificação de vontade individual manifestada pelo trabalhador o elemento que provoca fortes críticas ao estudo. A?nal, os conteúdos da relação de emprego são formados mais por necessidades indeclináveis do operário que efetivamente por opções de vontade pessoal.

O objetivo deste estudo está longe de negar as determinantes sociológicas e econômicas da relação instrumentalizada pelo contrato de emprego. Ao contrário, parte da referência do trabalhador como ente hipossu?ciente e da necessidade de preservação de contrato mínimo em constante ampliação. Mas especialmente preocupa-se em apresentar possíveis utilidades ao progresso do Direito Laboral na aplicação dos conceitos de autonomia privada. Nessa tarefa de “reumanização do contrato de emprego”, principalmente, buscaremos vincular as ideias de comportamento concludente, valoração social dos contratos individuais, ampliação das referências jusfundamentais e valorização das necessidades obreiras individuais.

2. O papel da vontade na teoria contratual clássica Autonomia da vontade

Com poucas variações, a doutrina jurídica ocidental reconhece a existência de três princípios contratuais clássicos: autonomia da vontade, obrigatoriedade e relatividade. De modo geral, todos se baseiam numa ideologia mercantil e na reserva ao indivíduo da valoração a partir de uma concepção estritamente proprietária.

A autonomia da vontade é sustentada por dois grandes suportes de ordens ?losó?cas e econômicas: o individualismo e o liberalismo. Entre os séculos XVIII e XIX, os ideais do Iluminismo foram rapidamente apropriados pela burguesia, tomando a forma do liberalismo econômico e da ossatura estatal aparentemente abstencionista. Como re?exo e suporte dos novos modos de organização de Estado e socie-dade, seguiu-se uma orientação individualista, em que o paradigma legal era o princípio da igualdade formal, abstraindo-se a realidade marcada por profundas diferenças sociais e econômicas. A sociedade, para o Direito Privado, era a constituída por pessoas igualmente livres, uma sociedade de proprietários, na qual os que não eram detentores dos meios de produção ou do capital eram, ao menos, proprietários da força de trabalho.

O projeto revolucionário burguês dos séculos XVIII e XIX exigia uma grande reificação do mundo. O negócio jurídico, mais do que

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singelo instrumento de circulação de riqueza, passou a ser fundamentado na vontade livre e soberana manifestada pelo indivíduo. Se as trocas eram necessárias para a sobrevida da burguesia, também era necessário que todos se vissem iguais para intercambiar. Neste ambiente, o contrato animado pela autonomia da vontade passa a ser o centro de todo o regime jurídico.

Os indivíduos passam a ser vistos como dotados de ampla autonomia para de?nição de praticamente a integralidade do regulamento contratual. A autonomia, ensina BETTI, é apresentada como autoridade, e como potestas, de autorregulamentação dos próprios interesses e relações exercidas pelo titular1.

Nessa qualidade, é reconhecida pela ordem jurídica, equiparando a vontade à própria lei. Reserva-se ao Estado apenas a função de permitir a livre manifestação de seu querer, garantindo a liberdade contratual, ou seja, reconhecer e tutelar juridicamente o poder dos indivíduos de suscitar, mediante declaração, os efeitos de sua vontade.

O voluntarismo clássico atribuía à vontade o papel de fonte mais importante para a criação do regulamento do contrato, ao ponto de ignorar a existência anterior do direito objetivo2.

Em termos gerais, autonomia da vontade passou a de?nir o poder atribuído ao querer individual de regrar as relações jurídicas, como forma de satisfazer seus interesses.

A autonomia da vontade aparece como instrumentalização do direito contratual no dogma da liberdade contratual. Em KANT, encontramos o princípio — universalizado pelo Iluminismo — que normalmente aceitamos de forma intuitiva de que “a liberdade de cada um termina onde começa a dos demais”. CAPELLA lembra que a fórmula, como código de conduta, parece justa; mas é paradoxal quando se examina o ponto de vista das condições de realizabilidade3. Ocorre que a perspectiva da autonomia privada implementada pelo liberalismo não diz respeito com as condições potenciais de realização da liberdade, mas na concepção da liberdade de forma juridicamente imanente.

CAPELLA também evidencia a existência de um paradoxo: a gênese da liberdade que têm os indivíduos é invertida no modo da ética individualista de concebê-la, sempre a respeito “dos outros”. As possibilidades de liberdade, adverte, estão em função das possibilidades de liberdade de todos, de modo que quem abusa contra alguém, a todos prejudica. Todavia, o iluminismo não vê dessa forma, porque aplica o que o autor chama de razão inacabada: para a razão ilustrada, o âmbito do abuso por excelência é o das relações interindividuais, e que não se confunde com a “ética social”4.

Embora a autonomia privada se exponha em termos gerais, como princípio absoluto, ela nunca foi ilimitada. A liberdade conferida sempre encontrou barreiras nas ideias de ordem pública e bons costumes. Também teve o requisito da vontade ser exposta sem vícios psicológicos, além de observar para a validade do contrato objeto lícito e possível, forma não prescrita ou não defesa em lei.

3. O Direito do Trabalho e a minoração da vontade na fixação da relação jurídica

A história do Direito do Trabalho é a história do afastamento da plena liberdade de contratar, no rumo da consagração da formação de uma ordem obrigacional privada estatal cogente e indeclinável. Assim, se estabelece com o objetivo de promoção de igualdade entre pessoas, o que BARBAGELATA chama de particularismo essencial do Direito do Trabalho e que termina por supor importantes

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restrições à liberdade daqueles que recebem e desempenham o labor5.

Ainda assim, de forma corrente, embora não unânime, reconhece-se o Direito do Trabalho como espécie do Direito das Obrigações, supondo o contrato como ?gura central. Por meio dele concretizam-se todas as outras fontes normativas, da Constituição ao regulamento de empresa6.

Como se disse, a a?rmação de que a relação de emprego se desenvolve a partir de um contrato, com diversos fatores de correspondência com o concebido no Direito Civil, não é pací?ca7.

Mesmo no magistério de DE FERRARI, a chamada instituição, como forma de de?nir o liame entre trabalhador e empresa, não exclui de forma completa a vontade. A?rma o autor que, no fundo, a instituição não difere muito do contrato, porque ambas noções jurídicas movem-se de certa forma dentro da esfera da autonomia da vontade e constituem distintos modos de autodeterminação ou formas de expressar livremente o querer individual8.

Certo é que o contrato, enquanto elemento exteriorizador da força vinculante da vontade individual, é construção forjada junto ao Code, dentro do projeto de um sistema jurídico privado para atos de circulação livre de riqueza9.

A Consolidação das Leis do Trabalho não de?ne o contrato de emprego. Na leitura dos artigos 2º e 3º pode-se intuir as categorias de empregado e empregador, sujeitos que com essas características entabulam a especí?ca modalidade pactual. A larga regulamentação estatal no estabelecimento de um contrato mínimo legal, cogente e irrenunciável diminui consideravelmente as matérias que podem ser objeto de livre acordo entre empregado e empregador.

De fato, a instrumentalização da relação de emprego, conforme estabelecido no art. 444 da CLT, outorga espaço bastante limitado para o exercício da força da vontade dos contratantes. Essa característica de baixa valorização do elemento volitivo — em grande parte de?nidora da autonomia da relação de emprego entre as demais relações jurídico-obrigacionais — torna intuitiva a crítica ao contratualismo no trabalho subordinado.

Como identi?cado acima, segundo a doutrina da autonomia da vontade, a liberdade de contratar se baseava na igualdade formal

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assegurada pelo ordenamento. O direito obrigacional, herdeiro do liberalismo, parte do pressuposto da igualdade das partes; sua origem repousa no conceito revolucionário-burguês de cidadão e na prévia concepção ideológica de que todos são iguais perante a lei. No Direito do Trabalho, as partes são desiguais, no sentido de que a desigualdade possa promover a igualdade de oportunidades, transformando a realidade empírica em fato jurídico conhecido10.

Esses dois institutos, liberdade e negócio jurídico têm in?uenciado profundamente o Direito do Trabalho brasileiro11. Diante da desigualdade de fato reconhecida, há di?culdade de se a?rmar uma ampla liberdade do indivíduo trabalhador na entabulação do contrato de emprego: o querer contratar, escolha do copactuante e estabelecimento do conteúdo da avença...

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