O resgate do culturalismo egológico na hermenêutica constitucional contemporânea

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas201-256
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*Conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, em 5 de outubro de
2005 e na sessão de abertura das XIX Jornadas Argentinas e I Argentino-Brasileiras de Filosofia Jurídica e
Social, em San Carlos de Bariloche, em 7 de outubro de 2005. O texto foi publicado na Revista Bonijuris,
Curitiba, n. 507, fev./2006, tendo sido revisto e ampliado para inclusão neste livro. N. A.
– X –
O RESGATE DO CULTURALISMO EGOLÓGICO NA
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
CONTEMPORÂNEA*
Luiz Fernando Coelho
Sumário: 1. A dimensão constitucionalista da jusfilosofia. 2.
Importância histórica e atualidade da teoria egológica do direito.
3. A hermenêutica constitucional egológica. 4. O problema do
fundamento dos direitos fundamentais. 5. Egologia dos direitos
fundamentais e crítica. 6. Egologia da legitimação constitu-
cional. 7. Egologia das antinomias constitucionais. 8. A
superação egológica do trilema de Münchhausen.
1. A dimensão constitucionalista da jusfilosofia
O mundo de hoje é dominado por alguns fatores que convém
destacar: a globalização, o avanço da informática e a vitória do
capitalismo, firmemente calcado na ideologia neoliberal e articulado
com a ideia do fim da história. Nesse contexto, o direito vê-se
crescentemente invadido pela técnica da legislação, e a racionalidade
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que o impregna perde aos poucos sua característica analítica tradicional,
de instrumento de solução de conflitos mediante a aplicação de normas
derivadas de princípios, para substituí-la por uma racionalidade
instrumental, de meios para atingir uma finalidade técnica. Na
contemporânea compreensão da ordem jurídica, esta se vê cada vez mais
envolvida pela imposição de metas ditadas pela economia: índices de
desenvolvimento, superávit primário, equilíbrio na balança de
pagamentos etc., com pouca margem para a realização de políticas
sociais. E o respeito aos princípios fundamentais da ordem jurídica, os
quais, elaborados ao longo da história, convergiram para a democracia
e o Estado de direito, acha-se limitado pelas exigências da técnica de
governar, subordinada a decisões tomadas em nível mundial por agentes
econômico-financeiros e pela única superpotência militar do planeta,
os Estados Unidos.
É claro que a reflexão filosófica sobre o direito teria que se
ressentir, e muito, dessa ideologia. Já na filosofia geral observa-se um
marasmo decorrente do abandono da busca de universais e sua
substituição por dois tipos de reflexão: primeiro, a consideração
meramente incidental dos problemas humanos, ao sabor das necessidades
do momento histórico, muitas vezes distorcidas, em parte para desviar
a atenção dos problemas que verdadeiramente interessam; segundo, uma
busca incessante de novos modos de pensar o que outrora se revestia de
universalismo, o que acaba por desaguar num repetitivo repensar de
velhas doutrinas.
Na filosofia do direito, essa temática repercute na reflexão pontual
de questões relacionadas com o avanço da técnica, e que adquirem uma
dimensão ética a exigir respostas filosóficas. Refiro-me a problemas
tais como eutanásia, clonagem humana reprodutiva, direitos humanos,
pena de morte e o problema sempre atual das carências sociais. Mas a
questão jusfilosófica nuclear permanece centrada na justiça, agora
voltada para considerações de relevância prática, tais como: sob que
critérios podem ser admitidas desigualdades econômicas, se é admissível
penalizar os descendentes por injustiças cometidas pelos ascendentes,
se existem critérios que tornem justa a guerra, se a proteção dos direitos
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1 MacINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Trad. de Marcelo Pimenta Marques.
São Paulo: Loyola, 1991.
O resgate do culturalismo egológico
humanos está sujeita a uma relação custo/benefício, quais os limites da
desobediência civil1.
Talvez pela memória ainda recente das grandes tragédias da
humanidade, principalmente as atrocidades cometidas em nome de
ideologias políticas, privilegia-se a questão dos direitos humanos, que
vem a constituir o cerne da hermenêutica constitucional contemporânea,
não somente pela relevância e atualidade do tema, mas também porque
tem servido de mote ideológico para novas formas de colonialismo e
opressão.
No entanto, de modo geral, a jusfilosofia ressente-se de certa
fadiga, pois, esgotados os grandes temas da lógica, da epistemologia e
da metafísica relacionados com o “jurídico” enquanto objeto de um saber
que se pretende universal, ressente-se ela da mesma lassidão que já
tomara conta da filosofia geral, e entrega-se a uma repetida e ineficaz
investigação sobre autores do passado, os quais construíram o formidável
edifício da ciência jurídica e da filosofia do direito.
É nesse último ponto que situo minhas reflexões. Demonstrar que
a atual jusfilosofia nada de novo tem acrescentado ao que nossos antigos
mestres têm elaborado, mas com uma agravante, que a memória desse
passado tem privilegiado as fontes europeias e relegado a injusto
esquecimento as contribuições da jusfilosofia ibero-americana. Talvez
por certo complexo de inferioridade devido a nosso passado colonial,
nós, pensadores ibero-americanos, rendemo-nos ao que se produz e
publica na Europa e nos Estados Unidos, e damos pouca importância à
nossa produção mais autêntica. E, o que é mais grave, inibimos nossa
criatividade intelectual.
Em aulas, seminários, palestras e conferências proferidas em meu
país, tenho observado essa tendência de muitos pesquisadores que se
rendem aos autores europeus do momento e pouco valorizam o que é
nosso. Autores do momento são aqueles junto aos quais nossos
professores de filosofia do direito tenham realizado seus cursos de
doutoramento e pós-doutorado, e é bastante natural que divulguem as

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