A Reserva da Intimidade como Direito da Personalidade

AutorClayton Reis
Páginas52-61

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"Não podemos dizer tudo nem mesmo ao nosso psicanalista, imagine só a um amigo." (O Elogio da Verdadeira Amizade - Jean Bertrand)

Clayton Reis

Introdução

A reserva da intimidade representa um bem jurídico da mais elevada expressão do ser humano. O tema, para alguns autores, é considerado como um núcleo pétreo, insondável e inacessível da vida íntima das pessoas. Por essa razão o princípio é amplamente tutelado pelas Constituições Portuguesa em seu art. 26, número 1 e Brasileira no art. 5º, inciso X1. Por sua vez, o princípio decorre da prescrição inserta na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 1948, que em seu art. 12 prescreve: "ninguém sofrerá intromissão arbitrária em sua vida privada". A etimologia da palavra intimidade é derivada do latim intimus, que possui um signiicado relacionado com fato mais profundo, estreito e íntimo da personalidade das pessoas. Por sua vez, ela é o indicativo qualiicativo do caráter dos seres humanos em seu processo de integração e relacionamento com as demais pessoas, levando-se em consideração os fatores e valores que as aproximam e as unem por meio da estima. Para vários autores, a intimidade revela relações próximas entre duas pessoas, atraídas pela coniança e identiicação existente entre elas. Costuma-se dizer no cotidiano que os ains se atraem. Esse pensamento é real, porque as pessoas que se entrelaçam por esse sentimento possuem identidades que lhe são características. Nas relações matrimoniais há uma íntima relação entre o casal decorrente do relacionamento fundado na afectio maritalis. Por essa razão, o grau de intimidade representa um profundo elo de aproximação nas relações dentro do núcleo familiar, ao compararmos com aqueles decorrentes de relações fundadas no simples afeto e coniança, como no caso do afectio societatis existente no âmbito das relações meramente comerciais.

Nessa linha de intelecção, a vida privada das pessoas implica na segurança de cada ser humano consistente no direito ao resguardo e ao sigilo dos fatos íntimos. Essa reserva da personalidade impede que fatos de caráter estritamente íntimo e pessoal sejam divulgados e expostos à consideração pública. O ser humano tem o direito de manter sob reserva pessoal fatos relacionados à sua intimidade, quando fatores externos possam interferir em sua personalidade,

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causando-lhe traumas emocionais, em razão de possíveis críticas realizadas pela vulgaridade dos comentários públicos, que naturalmente maculam a nobreza dos sentimentos das pessoas expostas. A existência do ser é pautada pela convivência com o outro. Essa forma de viver em sociedade, em razão da diversidade genética, cultural, histórica, intelectual e social do indivíduo, possibilita uma multiplicidade de condutas que integram a personalidade do ser humano. As pessoas somente serão compreendidas em seu relacionamento com as outras com as quais mantêm vínculos de trocas emocionais nas mais diversas dimensões.

A diversidade presente na sociedade moderna decorre dos multifacetários níveis de conhecimento e estrutura psicológica inerentes aos seres humanos. A convivência harmônica nesse ambiente diverso decorre da tolerância para estabelecer o equilíbrio nos conlitos existenciais. Essa realidade decorre dos princípios valorativos presentes na intimidade de seus titulares. Nesse ambiente onde predominam múltiplas formas de convivência, em razão das características diferenciais de cada um, os conlitos são inevitáveis. Por sua vez, importa considerar que o ser humano se encontra sujeito a contínuos processos de alterações - a pessoa é um ser mutante por natureza. Nessa diversidade dinâmica, o ser humano incorpora ao seu status situações que podem ser consideradas como construtoras ou destruidoras da personalidade. Segundo a concepção aristotélica, o ser humano é eminentemente social e prescinde dessa convivência para interagir com o ambiente coletivo na permuta de energias positivas ou negativas, que interferem na construção da sua intimidade. Nesse processo de formatação da personalidade, muitas informações acabam por se agregar à intimidade da pessoa, que não são divulgadas publicamente - permanecem nos arquivos secretos da intimidade do ser. Por tais motivos, o legislador pátrio e alienígena procura ampliar a tutela da personalidade em razão da sua relevância na ordem social. Para tanto, inseriu-a no art. 80, I, do Código Civil Português e no art. 21 do Código Civil Brasileiro2 uma proteção especial da intimidade. Mas, particularmente, no ordenamento constitucional.3 No momento que a Norma Constitucional tutela o direito à intimidade, o faz com o propósito de salvaguardar "esse metal precioso" do conhecimento das demais pessoas a im de proteger o ser humano da exposição dos fatos que se encontram no âmago da sua intimidade. É o direito de estar só, isolado do mundo exterior e de não ser molestado pelos comentários a respeito dos conteúdos que se encontram nas profundezas do seu espírito. Nessas situações a reserva da intimidade assume, na maioria das vezes, papel relevante na vida das pessoas.

1. Conteúdos da intimidade

O direito à intimidade, em razão da sua importância, mereceu proteção especial no ordenamento jurídico. Nesse aspecto, Rabindranath V. A. Capelo de Souza (DE SOUZA, 2011, apud ADRIANO DE CUPIS, nota de rodapé 809) descreve o fato alusivo à proposição: "... fala de um direito à história pessoal, adentro de um direito à projecção vital, como um direito a que não seja divulgada a nossa vida quer quanto à narração, quer quanto à reprodução, com proibição de historiar ou ilmar a vida de uma pessoa". Destarte, a nossa intimidade assume uma importância transcendental na ordem jurídica na medida em que a pessoa não admite a divulgação de conteúdos íntimos, que devem ser mantidos sob sigilo. Ainal, os fatos que se encontram na intimidade dos seres humanos não devem ser expostos publicamente, em face da possível violação de princípios valorativos e fundamentais presentes nessa área privada da personalidade.

Wanderlei de Paula Barreto (BARRETO, 2005. p. 174) alude ao seguinte fato, que merece registro: Mário Quintana interpretou ao pé da letra o axioma formulado pelo Lorde Coke, no julgamento do Samayene Case, em 1604: "Man’shouse in hiscastle" na qual "pode entrar o vento e a chuva, mas nem o Rei pode ter acesso". A saúde psicossomática de uma pessoa está associada a fatos reservados e presentes em sua intimidade (no subconsciente), que não devem ser revelados para preservar a integridade da personalidade de seu titular. Mas, no caso de ocorrer "turbação moral" ou invasão da intimidade da vítima, essa circunstância poderá gerar inevitáveis lesões na estrutura psicológica do ser humano.

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É natural que essa reserva íntima da pessoa, por conter informações de exclusivo conhecimento do seu titular, merece proteção adequada do ordenamento jurídico. O mens legis pretendeu salvaguardar a integridade da pessoa ao não permitir que fatos de caráter estritamente pessoal sejam divulgados. Nessa ordem de ideias, Rabindranath V. A. Capelo de Souza (SOUZA, 2011. p. 316) ensina que: "Adentro da tutela da personalidade moral prevista no art. 70 do Código Civil português é juscivilisticamente protegido o bem da reserva (resguardo e sigilo) do ser particular e da vida privada de cada indivíduo, que, aliás, também em ampla medida goza de garantia constitucional". Daí porque o art. 26, número 1 da Constituição portuguesa prescreve o resguardo: "... ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação".

Existem informações presentes no foro íntimo das pessoas que devem ser particularmente resguardadas, tais como a convicção ideológica política e religiosa, a situação inanceira, a sexualidade da pessoa, determinadas fobias típicas de certas personalidades e outras que possam comprometer a personalidade do seu titular perante o ambiente social. Por tais fundamentos, o Código de Trabalho português, em seu art. 16, 1 prescreve: "O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade". Ora, aqui se observa a importância desse princípio valorativo, porque guardar reserva sobre fatos da intimidade da pessoa prescreve uma ordem do maior signiicado, se considerarmos que a ninguém será assegurado direito de invadir essa esfera reservada do ser humano, com o propósito de violentá-la em seu conteúdo íntimo. Ou mesmo, utilizar-se da invasão da intimidade da pessoa com o propósito de expô-la publicamente a situações de constrangimento, com a revelação de fatos de exclusiva reserva do seu titular. Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (DE FARIAS E ROSENVALD, 2014. p. 246), "sob o ponto de vista estrutural estão contidos nos direitos à vida privada, o direito à intimidade e ao segredo (sigilo), compondo diferentes aspectos de um mesmo bem jurídico personalíssimo." Nessa esteira, com preciosismo, (DE FARIA E ROSENVALD, 2014, apud GILBERTO HADDAD JABUR, 246) esclarece que:

[...] o direito à vida privada posiciona-se como gênero ao qual pertencem a intimidade e o direito ao segredo. A vida privada é esfera que concentra, em escala decrescente, outros direitos relativos à restrição de vida pessoal de cada um.

Essa reserva da intimidade da pessoa é um direito fundamental. É essencial que o cidadão, como entidade autônoma no ambiente social, seja tutelado em conteúdos alusivos aos seus princípios valorativos. Jorge Miranda (MIRANDA, 2012,125) destaca que: "Há direitos em que se trata de proteger, direta e essencialmente, a pessoa enquanto tal, a...

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