Repulsa ao excesso

AutorAlexandre Pimenta Batista Pereira
Ocupação do AutorProfessor Adjunto na Universidade Federal de Viçosa
Páginas21-33

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3 - Teoria geral do excesso?

O excesso constitui expressão que remonta à desproporção das obrigações; sua mensuração contudo escapa a deinições, impondo-se como evidência; pertence a uma seara diversa da teoria dos vícios do consentimento, uma vez que propriamente completa o seu centro de investigação15.

Que o excesso revela fenomenologia anormal do negócio jurídico, a caracterizar uma patologia, é certo. Ou, como quer BETTI, desvia dos rumos da “típica função social”16. É importante diagnosticá-lo e, por conseguinte, oferecer-lhe tratamento jurídico adequado17.

De mais a mais, a ordem jurídica estabelece parâmetros a serem respeitados na ixação do objeto contratual. Conquanto a autonomia da vontade seja um princípio, não se tolera a liberdade irrestrita de contratar.

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Mas, de fato, destacando uma fórmula genérica para o ex-cesso, pode o legislador ixar limites objetivos à contratação? Ou, pelo contrário, ocuparia o repúdio do sobejo posição não-transparente nos códigos18

PLASTARA, em resposta a esses pormenores, admite ser “pouco provável uma teoria geral do excesso, ou seja, a possibilidade de oferecer ao juiz a faculdade de reduzir todas espécies de convenções que se encontrassem excessivas”19. Demarcando a autonomia, seria razoável que a repulsa ao excesso estivesse implícita no ordenamento, guiando o bom senso das partes no momento da conclusão negocial.

Seja como for, implícita ou não nos códigos, como justiicar a presença de situações no ordenamento, tais como o abuso de direito, a lesão, o estado de perigo, a resolução do contrato por onerosidade excessiva? De alguma forma, viriam elas a representar um repúdio geral ao sobejo?

4 - Abuso do direito

A princípio tratada como incongruência jurídica, no inal do século XIX a teoria do abuso de direito foi levantada em decisões de tribunais franceses, que introduziram o elemento social e a relatividade no momento do exercício do direito20.

JOSSERAND lembra que o direito não pode ser exercido de forma injusta, remetendo o ato abusivo ao exercício antifuncio-

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nal21. Nesse sentido, é importante entender que o abuso de direito é, em essência, manifestação do excesso22.

A teoria do abuso do direito trata não apenas dos limites concretos, traçados pelos instrumentos legislativos, mas ainda das fronteiras menos aparentes de que se deduzem as prerrogativas jurídicas, direcionadas a interesses limitados na ordem social. O excesso exprime perspectiva de natureza quantitativa, sendo, assim, ideia que está contida na noção maior de abuso23.

Rompido o papel, próprio de um momento histórico, para o qual foi concebida, a teoria do abuso do direito entrou em declínio no início do século XX. Em França, foi conduzida à respon-sabilidade civil; na Alemanha, foi substituída por iguras mais restritas24.

Em Portugal, reenvia-se a ideia do abuso de direito à ilegitimidade. Mas, há que se entender cum grano salis sua consagração no art. 334, do Código Civil Português.

MENEZES CORDEIRO, a propósito da positivação da teo-ria, tece considerações acerca dos ins que levaram o legislador a colocá-la em igura unitária25. Ancorada em larga amplitude, quer em situações múltiplas de exercício inadmissível, quer na noção da disfuncionalidade dos direitos, surgiria diiculdade no momento de sua concretização efetiva.

No direito brasileiro, o tema já havia sido abordado desde o código anterior. BEVILAQUA, ao interpretar, a contrario sensu,

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o art. 160, I do Código Civil de 1916, considera abusivo o ato que se exerça em desfavor do exercício regular de direito26.

O Código Civil Brasileiro de 2002 tem, de um lado, o mérito de explicitar a igura do abuso de direito27. Entretanto, de outro, a esvazia de conteúdo, já que não a conduz a uma categoria verdadeiramente autônoma; ao contrário, remete a sanção do ato abusivo à ilicitude.

Nesse sentido, a tríade do art. 187 do Código Civil de 2002, que vincula o exercício do direito subjetivo aos limites impostos pela inalidade econômico-social, pela boa-fé e pelos bons costu-mes, induz a coibir o manifesto excesso. Para além da discussão da prevalência ou não da culpa como elemento conigurador do abuso do direito, propõe-se a acolhida da igura que mais se coa-dunaria com o exercício inadmissível de posições jurídicas.

A razão é de se tentar compreender. Não necessariamente o ato pode chegar à caracterização da ilicitude. A medida, abu-siva e antifuncional, pode originar-se de uma conduta que ira a coniança, mas que não leve, por consequência, a sanção da antijuridicidade28.

A partir dessas considerações, podem-se colocar em dúvida razões de utilidade para sua positivação. Além de o instituto já se apresentar com vestes ultrapassadas na história, outro motivo em favor de sua posição silenciosa nos códigos é fazer que o aplicador busque libertar-se da letra. Ora, se se pensar que seu reconhecimento já se fazia frequente não só na doutrina, mas também no foro, a que veio a explicitação? Tentar superar as

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amarras da subsunção, marca própria do raciocínio silogístico, representa meta dos tempos pós-modernos.

Por isso, entende-se que o melhor seria que a vedação ao abuso do direito primasse, hoje, pela pulverização em diferentes searas, conduzida, em última instância, à proteção da coniança e ao resguardo da boa-fé objetiva.

5 - Lesão

A ordem jurídica persegue equilíbrio objetivo das prestações, essência dos contratos comutativos. Não se concebe, por isso, a execução do contrato cujas prestações se traduzem em manifesto desequilíbrio entre as partes. Para remodelar a igual-dade rompida, surge o vício da lesão29.

Haveria, assim, pontos em comum entre a lesão e a inoiciosidade? Pensamos que sim.

O primeiro é a evidência do excesso nas prestações: ambos os institutos expressam desequilíbrio no sinalagma.

BITTAR FILHO, com perspicácia, resume as espécies de lesão:

“A lesão pode ser desdobrada, do ponto de vista funcional, em três iguras: a lesão propriamente dita (incluindo a le-são enormíssima), a lesão usurária, ou usura real, e a lesão especial. O elemento comum às três espécies é o benefício excessivo de uma das partes, em contrato oneroso, com o consequente prejuízo da outra, mas: a) para a caracterização da lesão propriamente dita, basta haver esse excesso nas vantagens e desvantagens (defeito exclusivamente objetivo); b) para a caracterização da segunda, exige-se também uma situação de necessidade, inexperiência ou leviandade de uma das partes, com dolo de aproveitamento de outra (má-fé); c) no

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que concerne à lesão especial, limita-se ela à mesma exigência de excesso nas vantagens e desvantagens, causada pela situação de necessidade ou inexperiência de uma das partes, ao contratar, sem, no entanto, a indagação da má-fé ou da ilicitude do comportamento da outra (não se cogita de dolo de aproveitamento)”30. [Grifou-se].

Na inoiciosidade, o elemento quantitativo-objetivo é tam-bém de rigor. A ordem jurídica se empenha, no caso concreto, por remodelar a quantia excessiva, de modo a fazê-la mais condizente com a equidade.

Outra semelhança entre as duas teorias provém do princípio da conservação dos negócios jurídicos, que se explicará em capítulo próprio. Tanto para os casos de inoiciosidade quanto para os de lesão, as partes podem optar pelo redimensionamento do negócio, até limites menos exorbitantes31. É útil lembrar, a esse respeito, o § 2º do art. 157, do Código Civil de 2002: “Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suiciente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”.

É conveniente, neste ponto, traçar considerações sobre as raízes históricas do instituto da lesão.

Revestindo-se do critério objetivo para apuração, a laesio enormis, do Direito Romano, feria o dever de neminem laedere. Quanto ao problema dos vícios do consentimento e a respeito da questão da restituição...

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