Repensando a questão da historicidade do estado e do direito na américa latina

AutorAntonio Carlos Wolkmer
CargoProfessor Titular de “História das Instituições Jurídicas” dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Páginas82-95

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Introdução

O processo de historicidade na América Latina tem sido caracterizado por uma trajetória construída pela dominação interna e pela submissão externa. Trata-se de um cenário montado a partir da lógica da colonização, exploração e exclusão dos múltiplos segmentos étnicos, religiosos e comunitários. Uma história de contradições e desigualdades sociais, marcada pelo autoritarismo e violência de minorias, e pela marginalidade e resistência das maiorias “ausentes da historia” (GUTIERREZ, 1984, p. 270), como os movimentos indígenas, negros, campesinos e populares.

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Torna-se, assim, essencial, compreender a cultura política e jurídica latino- americana como reflexo das diferenças histórico-estruturais e contradições em diversos momentos socioeconômicos vivenciados.

Naturalmente, os ecos das desigualdades sociais dos países da América Latina hão de ser encontrados “na conjugação dos fatores internos e externos, pois a dependência é produto tanto das condições criadas pelo sistema de dominação político-econômico mundial quanto das relações de (...domínio) e da ação ético-cultural dos agentes e dos grupos na esfera de cada Nação e cada Estado” (WOLKMER, 1994, p. 25). A importação de estruturas culturais assimiladas pelas elites locais (matrizes eurocêntrica e norte-americana) tem favorecido e alimentado formas de dominação econômica e de exclusão social, inviabilizando o desenvolvimento de uma cultura política e jurídica autenticamente latino-americana.

É com esse propósito, de destacar sublinearmente as contradições, exclusões e desigualdades sociais, que se situa a presente reflexão, ou seja, uma breve incursão sócio-política questionadora acerca dos horizontes históricos e dos processos constitutivos do modelo de Estado e de Direito impostos aos países da América Latina, sobretudo, a especificidade do Brasil.

1. Primórdios e Percursos de uma Tradição Estatal Periférica

Distintamente do processo de edificação do Estado europeu, constituído por uma burguesia liberal enriquecida e que suplanta a organização aristocrática-feudal, a experiência histórica da formação do Estado nas Sociedades periférico-capitalistas da América Latina assume determinadas particularidades heterogêneas. Primeiramente, há que se observar que o Estado não é produto de uma Sociedade nacional e politicamente organizada, tampouco criação exclusiva de um segmento economicamente dominante, mas sim o próprio Estado como o artífice que irá ter um papel importante em definir os grupos sociais e as formas de sociedades nacionais existentes. Assim, diante do caráter extremamente débil dasPage 84elites nacionais, subordinadas aos interesses de acumulação econômica das metrópoles, emerge um modelo de Estado que se projeta para direcionar a Sociedade, para efetivar as mudanças estruturais independente da participação dos setores ou facções regionais, para legitimar o espaço público na negociação entre as oligarquias rurais e as burguesias estrangeiras, assegurando o consenso dos subordinados através de uma política de cooptação e de distribuição clientelística de favores. Certamente, o surgimento do Estado-Nação na América Latina se efetiva, no início do século XIX, diante das condições histórico-políticas e do surto dos movimentos de independência contra os colonizadores lusohispânicos. De fato, para Cardoso, o Estado latino-americano “(...) nasce em contradições históricas que o tornam expressão de uma relação duplamente contraditória. De um lado, trata-se de um Estado que se afirma como politicamente soberano, pois (...) o suposto de soberania é um prérequisito formal para o pensamento sobre o Estado”. De outro, contudo, “essa soberania se afirma num solo embasado numa economia que é dependente. (...). Portanto, o Estado Nacional funda-se num contexto em que a aspiração de soberania está condicionada pela existência de uma estrutura objetiva de relações econômicas internacionais, que limita a existência efetiva dessa soberania na medida em que repõe a existência de relações de dependência. Essa é uma das oposições fundamentais que caracteriza toda e qualquer forma de Estado na América Latina” (CARDOSO, in PINHEIRO, 1977, p. 80-81). Não menos relevante é a constatação de que “existiu uma aspiração à criação de um Estado liberal em certos países, que se deteriorou na prática”, pois “esse Estado liberal, na verdade, assume uma forma oligárquica e que por trás da formulação liberal existem, de fato, formas de dominação tradicional de cunho autoritário” (CARDOSO, in PINHEIRO, 1977, p. 81). Fica claro, por conseguinte, que o Estado na América Latina abrange uma estrutura de múltiplos aspectos e que por sua complexidade torna-se difícil fixar um único conceito, o que tem levado a diversas interpretações de um fenômeno estudado como Estado Oligárquico (Torcuato Di Tella, Gino Germani, Octavio Ianni, Francisco Weffort), Estado de Capitalismo Dependente (Fernando H. Cardoso, Enzo Faletto, Anibal Quijano etc.),Page 85Estado do Subdesenvolvimento Capitalista (Theotônio dos Santos, Rui M. Marini, André Gunder Frank etc.), Estado Pretoriano ou Militar (Samuel Huntington, Alain Rousquié), Estado Patrimonialista ou Burocráticoestamental (Raymundo Faoro, Simon Schwartzman), Estado Autoritário- Burocrático (Guillermo O’Donnell, David Collier etc.), Estado Corporativo (Alfred Stepan, Howard J. Wiarda, Philippe C. Schmitter) etc.

Ainda que se possa configurar uma conceitualização de Estado periférico latino-americano, a partir de determinados núcleos históricos similares e comuns, não se pode deixar de levar cm conta a “especificidade” do processo formativo dos diferentes “modelos estatais” e a necessária relação com os desdobramentos do Estado capitalista contemporâneo. Antes de tudo, cabe desmitificar as versões que visualizam o Estado latino-americano, ora como órgão abstrato, protetor e árbitro eqüidistante dos antagonismos sociais, ora como fenômeno produzido pelo jogo determinista de uma estrutura econômica, instrumentalizando a dominação de um segmento societário ou uma classe sobre outra (MARTNER, 1986, p. 142-153). Sem cair no reducionismo clássico do modelo liberal e do coletivismo estatizante, a desmitificação implicará a necessidade de se repensar, criticamente, um novo conceito de Estado, adequado às...

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